Publicado em O Estado de S. Paulo, 02/03/1999
A reindexação dos salários
Com o aparecimento dos primeiros efeitos da mudança cambial nos índices de inflação, reascendeu no Brasil o medo da reindexação dos salários.
O instrumento legal que instituiu o Plano Real é claro: é vedada a estipulação de cláusula de reajuste ou correção salarial automática vinculada a índices de preços (MP 1.750-47, artigo 13).
Mas, e daí? Os trabalhadores vão carregar sozinhos o ônus da inflação? Ou vão conseguir recuperar alguma coisa através de negociações e sentenças judiciais?
O que esperar para 1999? Há setores promissores que estarão vendendo bem, contratando e recontratando bons empregados. Incluem-se aí as empresas voltadas para a exportação (commodities, agrobusiness, automóveis, calçados, têxtil, etc.) e para a substituição de importação (autopeças, tecidos, confecções e vários outros bens de consumo).
Por outro lado, há setores recessivos que estarão amargando graves dificuldades e dispensando massas de trabalhadores (administração pública da União, Estados e Municípios, construção civil e pesada, eletrodomésticos, serviços pessoais dispensáveis e parte do comércio).
Os setores promissores, demorarão para empregar, pois precisam de tempo para se organizar e reconquistar os mercados internacionais. Os setores recessivos vão desempregar rapidamente - muitos já começaram desde o ano passado. O Brasil está fechando cerca de 130 mil postos de trabalho, mensalmente, no mercado formal.
Qual é o impacto dessa assimetria do emprego no campo dos salários? Tudo indica que os sindicatos que cobrem os setores do primeiro grupo terão boa munição para pleitear a reparação dos danos da inflação e até aumentos reais de empresas que estarão produzindo bastante e vendendo bem.
Serão negociações acirradas. é impensável para essas empresas trocar seus colaboradores por outros que estejam dispostos a ganhar menos. Nos últimos anos, elas enxugaram os quadros e acabaram retendo uma seleta plêiade de profissionais bem qualificados e bastante produtivos.
No caso de impasse salarial, os dissídios irão para os tribunais do trabalho. Os juizes poderão julgar os pleitos sindicais como procedentes, e concederem aumentos que recomponham ou elevem o poder aquisitivo. Dependendo do percentual arbitrado, muitas empresas poderão absorver o aumento, sem repassar para os preços.
Os sindicatos que cobrem os setores em recessão, todavia, estarão vivendo um outro mundo. Ali a luta pelo emprego será desesperadora, e muito maior do que a luta pelos salários. Com esse pano de fundo, será difícil conseguir, na mesa de negociação, a reparação da inflação - nem falar em aumentos reais.
Já no ano passado, cerca de 70% dos acordos e convenções da indústria tiveram aumentos salariais iguais ou menores do que a inflação. E, nos poucos casos julgados, a Justiça do Trabalho manteve o padrão das negociações.
Mas, naquele ano, a inflação foi desprezível, enquanto que neste, começa como ameaçadora. O que pode acontecer? Será que, nos eventuais casos de dissídios coletivos, oriundos de setores recessivos, os juizes, dentro da sua responsabilidade básica de fazer justiça, negarão a esses trabalhadores aquilo que concederam aos seus colegas dos setores prósperos, sabendo-se que a inflação machuca a todos da mesma maneira?
Duvido. E é aí que mora o perigo. Se a Justiça do Trabalho universalizar os percentuais de aumentos, como já fez no passado, estará dada a partida no velho jogo do "perde-perde" no qual os salários e preços correm atrás uns dos outros, numa ciranda suicida.
Em uma hora como essa é que se percebe a falta que fazem instituições modernas no campo do trabalho. O Brasil é o único país do mundo em que a Justiça do Trabalho tem poder - o poder normativo - para dirimir conflitos de natureza econômica, como é o caso de reajustes e aumentos salariais. Em todos os demais, os tribunais do trabalho, quando existem, dirimem apenas os conflitos de natureza jurídica – os desvios da lei. As disputas salariais são resolvidas entre as partes, através da negociação e procedimentos de auto-composição.
A reforma da Justiça do Trabalho, que ficou dormente e relegada nesses quatro anos de inflação baixa, tornou-se, de repente, visível e urgente neste momento em que tudo deve ser feito para se evitar a ativação de mecanismos que reascendam a destruidora indexação dos salários. Essa reforma não depende do FMI, nem da Ásia e muito menos da Rússia. Ela depende só de nós brasileiros.
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