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Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/03/00

Mínimo federal, pisos estaduais

José Pastore

Desgastado pela escalada das forças de oposição que insistiam em um aumento incompatível com as metas do ajuste fiscal, o governo federal decidiu deixar para os Estados a liberdade de ultrapassar o salário mínimo nacional através de "pisos estaduais" – utilizando-se, para tanto, de um projeto de Lei Complementar a ser examinado e aprovado pelo Congresso Nacional.

Sem entrar na polêmica de ordem jurídica que o projeto promete acalentar, e dispensando comentar a engenhosidade política da medida, tentarei examinar as conseqüências da sua eventual adoção para os brasileiros que precisam ganhar mais.

Se aprovada, a nova sistemática vai permitir a coexistência de dois salários legislados: o mínimo, no nível federal e o piso, no nível estadual - aplicável aos servidores públicos contratados no regime da CLT e trabalhadores do setor privado integrantes de categorias profissionais que não possuem essa proteção nos acordos ou convenções coletivas de trabalho.

Quantas são essas categorias? Apesar de se dizer que o Brasil possui um sindicalismo fraco, é interessante ler as listagens sobre datas-base e negociações que o Ministério do Trabalho costumava publicar – é pena que parou – e verificar ali a enorme quantidade de categorias profissionais que, no mercado formal de trabalho, negociam pisos salariais acima do salário mínimo. São mais de 40 mil acordos e convenções coletivas, cobrindo quase todas as categorias. Poucas necessitam de piso legislado.

No mercado informal, porém, a quantidade de trabalhadores que ganham um salário mínimo e até menos é colossal. Estaria aí a utilidade maior da medida?

Em tese, sim. Mas, exatamente por estar na ilegalidade, as empresas desse setor só pagam o salário mínimo quando não conseguem encontrar trabalhadores que aceitem trabalhar por menos. A fiscalização não dá conta de corrigi-las. Será que, daqui por diante, elas pagarão um piso mais alto que o mínimo só porque o novo valor vai ser fixado pela Assembléia Legislativa e sancionado pelo Governador? Parece pouco provável.

Mas, dentro do mercado formal de trabalho, há o caso dos servidores públicos "celetistas" que ganham um salário mínimo: são cerca de 100 mil estaduais e 230 mil municipais.

Esse universo pode ser beneficiado com um piso estadual superior ao salário mínimo. A despesa gerada pela medida, entretanto, deverá chocar os governadores e prefeitos que estão sem recursos e os que estão em busca de um equilíbrio orçamentário. Para eles, a melhor estratégia será a de não lutar pela aprovação da lei estadual.

Por isso, tudo indica que o piso estadual terá pouco significado para o mercado formal e será impotente para corrigir o mercado informal. Para os servidores celetistas, a pretendida elevação poderia ser feita sem Lei Complementar, bastando aos governadores e prefeitos remanejarem recursos para atender os que mais precisam.

No campo das relações do trabalho, observa-se que a medida traz de volta a idéia de se legislar sobre o valor dos salários. É verdade que são apenas os salários mais baixos. Mas, não deixa de ser um retrocesso. O Brasil levou muito tempo para se livrar das políticas salariais onde os reajustes eram fixados por leis federais.

A duras penas, o País passou uma borracha na indexação salarial. Não classifico a medida como reindexadora. Mas, convenhamos, as Assembléias Legislativas terão de levar em conta algum critério para fixar um adicional de R$ 20, R$ 30 ou R$ 40 sobre o valor do salário mínimo. Qual será esse critério? O custo de vida local medido pelo índice de variação dos preços? Não estaria aí embutida a noção de indexador para reajustar os pisos todos os anos?

Penso que, dos que ainda não o fizeram, haverá poucos governadores em condições econômicas para conceder pisos estaduais generosos pois, para a saúde das finanças públicas, isso significa um tiro no pé. O perigo surgirá quando a mesquinhez política de alguns e a bem cultivada demagogia de outros levarem parlamentares e governantes a fixar pisos estaduais embaraçosos para seus sucessores e ilusórios para seus servidores. Nesse caso, o tiro atingirá o povo.

Felizmente, estamos diante de um projeto de Lei Complementar. Haverá muito tempo para se estudar a matéria. Seria ótimo se os nossos parlamentares usassem uma pequena parte desse tempo para atacar de frente os problemas da legislação trabalhista e previdenciária que são os reais impeditivos para se conceder um salário mínimo decente a todos os brasileiros. Do contrário, teremos a mesma novela no ano 2.001.