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Publicado em O Estado de S. Paulo, 16/12/2003.

Natal sem consumidores

É claro que o título é exagerado. Na hora "h" todo mundo vai às compras para agradar os seus queridos. Com lembranças e lembrancinhas, a grande maioria dos brasileiros acaba fazendo do Natal a festa que a família espera o ano inteiro.

Mas o aperto de 2003 foi duro. O poder de compra foi solapado em vários flancos. O desemprego subiu para 13%. O salário médio caiu 13%. A manutenção da tabela do imposto de renda levará mais 9%. Os preços públicos explodiram. Enfim, a renda real dos trabalhadores foi arrasada. E, por cima de tudo, o crédito tornou-se inacessível. Quem agüenta pagar 150% de juros em um cartão de crédito ou cheque especial?

É acaciano. Não há como comprar sem renda e sem crédito. Ademais, o aperto de 2003 foi feito em cima de uma massa de consumidores que já era frágil. Em editorial recente, o Estado de S. Paulo comentou o profundo estado de anemia em que vivem os consumidores brasileiros. O quadro é brutal. Dos 175 milhões de habitantes, apenas 40 milhões têm renda para se comportar como consumidores. Os demais, sobrevivem, e olhe lá. ("A falácia do mercado de consumo", 08/12/2003).

Essa brutalidade é persistente. Os dados da tabela abaixo dão uma idéia do nosso minúsculo poder de compra. Na população economicamente ativa que trabalha, mais de um terço não tem rendimento. São pessoas que recebem em espécie ou ganham "cama e comida" por ajudarem pais, parentes ou amigos. São quase 30 milhões de brasileiros!

Na classe imediatamente superior - os que recebem até RS$ 240,00 por mês - estão quase 17,5 milhões de pessoas, muitas delas com responsabilidade de sustentar uma família. Juntando-se os dois grupos, chega-se ao impressionante número de 47 milhões de pessoas cujo poder aquisitivo mal dá para se alimentar. Em grave situação estão cerca de 7 milhões de brasileiros que estão amargando o desemprego pois, pelo menos temporariamente, não têm nenhuma renda ou vivem do seguro-desemprego e da assistência social. A classe seguinte, que engloba quase 14 milhões de pessoas, tem um rendimento mensal que não é nada extraordinário, atingindo, no máximo, R$ 480,00 que, na maioria dos casos, repetindo, têm de cobrir despesas de toda a família.

Rendimento das pessoas que trabalham - Brasil 2003

Rendimento mensal (R$)

No. de pessoas

%

Sem rendimento

29.280.000

36,6

Até 240,00

17.440.000

21,8

241,00 a 480,00

13.760.000

17,2

481,00 a 720,00

6.560.000

8,2

721,00 a 1.200,00

5.600.000

7,0

1.201,00 a 2.400,00

4.160.000

5,2

2.401,00 a 4.800,00

1.600.000

2,0

Mais de 4.800,00

800.000

1,0

Sem declaração

640.000

0,8

Total

79.840.000

100,0

Fonte: IBGE, PNAD 2002. Estimativa para 2003 do autor.

Nada disso é surpreendente. O que seria surpresa é ver esse povo dando um salto por ocasião do Natal, especialmente, em um ano de forte desemprego, redução de renda, alta tributação (manutenção da tabela do imposto de renda), escorchantes juros e explosivos preços públicos. Tudo isso conspirou contra o poder aquisitivo da maioria dos consumidores.

As compras do Natal e ao longo do ano poderiam ser bem melhores se os brasileiros tivessem as regalias dos americanos, por exemplo, que além de renda muito mais alta, podem adquirir produtos caros para serem pagos a perder de vista (inclusive residências) com juros de 3% a 6% ao ano.

Quando se fala em ativar o mercado interno, há que se levar em conta essa triste realidade: o nosso povo não tem renda. Pior. As distorções na sua distribuição têm raízes fundas o que requererá um tempo longo para serem atenuadas. Melhora substancial nesse campo vai precisar de uma ampliação substancial do acesso à escola - e boa escola - assim como do acesso à terra - e com apoio técnico - além de uma redução dos fatores de discriminação que machucam as mulheres, os negros, os portadores de deficiência, os mais pobres e vários outros grupos vulneráveis.

Mais grave do que isso, é preciso lembrar que muitas dessas distorções decorrem de leis de má qualidade como é o caso da garantia da universidade pública gratuita para quem pode pagar, da utilização dos recursos da assistência social pelos não pobres, da garantia de aposentadorias polpudas para quem menos contribuiu para o sistema previdenciário e assim por diante.

Em suma, não basta trombetear contra a má distribuição de renda. É preciso ter coragem a patriotismo para legislar em favor dos excluídos. Muitas medidas serão impopulares porque descontentarão os incluídos. Mas, afinal, o que queremos fazer do Brasil? Um país de consumidores ou de assistidos? Essa escolha é crucial para se chegar a um bom mercado interno. O resto é demagogia.