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Publicado em O Estado de S. Paulo, 10/05/1989

Estabilidade já

Uma coisa é chegar à democracia. Outra coisa é permanecer nela.

Os países que sofrem de má distribuição de renda e baixo crescimento econômico têm grande dificuldade para adentrar a democracia e uma dificuldade ainda maior para nela continuar. Essa afirmação não é teórica, tampouco representa um desejo. Ela reflete os resultados de uma pesquisa rigorosa, conduzida em 1988, por Edward N. Muller em 55 países, inclusive o Brasil (Democracy, Economic Development, and Income Inequality).

O trabalho procurou responder, separadamente, a estas questões: (1) Até que ponto uma boa distribuição de renda é pré-condição para uma nação se tornar democrática? (2) Até que ponto uma boa distribuição de renda é pré-condição para uma nação continuar democrática?

A pesquisa mostra com clareza que as nações de fortes desigualdades, quando se tornam democráticas, só persistem nesse regime na medida em que atenuam as desigualdades. Quando estas persistem, a mistura de desigualdade com liberdade de expressão leva os grupos marginalizados a questionarem, de forma crescente, a competência do governo e até mesmo a utilidade do regime.

Dentre as 55 nações estudadas por Muller, as de má distribuição de renda apresentam uma tendência muito grande para romper a ordem democrática. As democracias das 20 nações de pior distribuição de renda foram todas para o espaço entre 1961 e 1980. Isto não é uma hipótese. É um fato acontecido.

Se usarmos essa associação para analisar o desatino de Fujimori, os movimentos na Venezuela e no Equador e, em menor escala, a recente passeata das esposas dos militares no Brasil, o quadro político-institucional é preocupante.

Nas nações de menor desigualdade e mais democracia, as instituições de base desempenham a importante função de digerir os descontentamentos. Mas onde a desigualdade é intensa e as instituições são frágeis, o risco de ruptura democrática é inegavelmente maior. Tudo se agrava quando o país é assolado por forte recessão e por um verdadeiro tamponamento do futuro dos jovens. Nessas condições, os movimentos de protestos, em especial os dos militares, não podem ser analisados como fatos isolados.

A situação brasileira merece atenção. Entre nós, as disparidades sociais minam a legitimidade do regime e podem provocar a substituição das instituições democráticas por regras autoritárias – reduzindo-se, assim, a vida útil de nossa democracia.

Numa situação como essa, não é o reajuste de emergência do soldo dos militares que vai dar a sustentação ao regime. Esta tem muito mais a ver com o desenvolvimento econômico e com a atenuação das desigualdades do que com os paliativos aplicados nos grupos que protestam.

O próprio estudo de Muller mostra que, nos países de forte desigualdade, a entrada e a permanência na democracia têm mais sucesso quando feitas com base num partido político forte que, por sua vez, implemente metas redistributivas nos primeiros anos da gestão do governo.

O Brasil entrou no novo regime em 1989 com base numa disputada eleição direta. Foi uma festa democrática. Faltou ao presidente Collor, porém, o partido forte ou até mesmo as alianças necessárias para promover, de pronto, as referidas transformações sociais. Muita coisa foi feita, sem dúvida. Mas o Brasil persiste na desigualdade, agora associada a uma profunda estagnação – sob a mais ampla liberdade de expressão.

Com esses ingredientes, é bom rezar, porque o golpe também não resolve. Oxalá a teoria de Muller esteja errada. Mas, convenhamos, no meio de tanta desilusão será difícil calar os descontentes. Afinal, as manifestações não são a causa da ruptura democrática. Elas emergem da combinação da desigualdade com a liberdade. E, como ninguém deseja eliminar a liberdade, só nos resta atacar a desigualdade. É por aí que o Brasil poderá pensar em permanecer no clube das democracias, e não apenas festejar a sua precária admissão.