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Publicado na Revista Exame, 17/03/2004

Falta casa, mas falta renda

O governo acaba de encaminhar ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que visa aumentar a disponibilidade de crédito e melhorar a segurança jurídica dos empréstimos na área habitacional. Com isso, estimularia a geração de empregos. É de se perguntar se dará certo. Sabe-se que a construção civil forma entre os setores capazes de gerar um número significativo de empregos diretos e indiretos. Como os projetos são de maturação rápida, acabam gerando empregos rapidamente. Além disso, há uma demanda explosiva por casa própria no país. Se considerarmos os que vivem em condições inadequadas, seria preciso fazer 12 milhões de casas. Ainda que se adotasse uma visão mais conservadora, contabilizando-se apenas aqueles que moram muito, mas muito mal, sem condições mínimas, seria necessário construir 6,5 milhões de moradias.

O alvo do projeto é bom, portanto, e o potencial de empregos, enorme. Mas tenho cá minhas dúvidas se os empregos aparecerão no curto prazo. Penso que não. É útil aumentar o crédito e fortalecer a segurança jurídica de quem constrói e de quem compra o imóvel (os pontos altos do Projeto de Lei). Mas é impossível com tais medidas vencer o maior obstáculo do momento: a escassez de consumidores capazes de arcar com as taxas de juros anuais de 15% na compra de uma casa. Por quê? O Brasil vivencia a mais perversa das equações no mercado de trabalho. O desemprego e a informalidade crescem, enquanto a renda cai. É verdade que o nicho a ser explorado pelo novo programa é a classe média. Sucede, porém, que seus membros também estão na pior. O desemprego já atingiu os profissionais de renda mais alta. E os que sobrevivem empregados sofreram um terrível estrangulamento em conseqüência de perdas salariais e da enorme elevação de preços nos bens e serviços mais consumidos – educação, saúde, combustível, comunicações, seguros. Isso sem falar na obscena escalada de impostos e taxas que incidem sobre tais itens e sobre os próprios salários, de que é exemplo o congelamento da tabela de Imposto de Renda.

É animador saber que os bancos aumentarão a oferta de crédito habitacional em 200 milhões de reais por mês, ou 1,6 bilhão até o final de 2004. Mas, quem se arriscará a tomar esses recursos numa situação de desemprego a 11%, informalidade de 60% e queda de renda de 13%?

O fato é que o quadro da renda no Brasil continua calamitoso. Cerca de 30 milhões de brasileiros que trabalham (ou 37%) fazem serviços domésticos e ajudam parentes, sem nenhum rendimento. Outros 17,5 milhões recebem até 240 reais por mês, enquanto 17% dos que trabalham ganham de 241 a 480 reais. Apenas 6,5 milhões chegam a receber 720 reais.

Aí estão computados 84% dos brasileiros que trabalham a chamada classe média, que ganha mais de 2.400 reais por mês e que seria potencial compradora dos imóveis financiados, mal alcança 3 milhões de pessoas. É duvidoso que consigam pagar um juro real de 9% ou 10% ao ano quando sua renda continua cadente.

Isso não significa, de modo algum, que se deva suspender o programa. Tudo o que puder ser feito, ajuda. Mas, realisticamente, não devemos acreditar que este projeto integrante da agenda positiva vá proporcionar ao Brasil o "espetáculo do emprego" em 2004. Para tanto, será necessário que o Brasil cresça como um todo – não apenas na agricultura, como ocorreu em 2003. Isso só se obterá se o governo injetar ânimo nos investidores produtivos. Sem confiança, não haverá novos empregos.