Publicado na Folha de S. Paulo, 07/02/1989
Nova indexação salarial ameaça o Plano Verão
Como ficará a política salarial daqui para frente? Os ministros da área econômica se dizem dispostos a discuti-la com trabalhadores e empresários, demonstrando sua preferência pela negociação livre e integral dos salários. Mas o Congresso Nacional, ao conceder a reposição das perdas de janeiro, demonstrou uma preferência pela pré-indexação. Na verdade, ele acabou introduzindo, na prática, um novo sistema de reajustes automáticos, muito mais acelerado e potente do que a URP. Vejamos os argumentos.
Dois artigos do Plano Verão constituem a base da nova política salarial. O Artigo 5º pretende acertar o presente, ao estabelecer o reajuste de janeiro de acordo com a URP aplicada sobre a média real de 1988. O artigo 7º introduz uma restrição-chave ao permitir que, apenas por negociação, é possível às partes recuperarem perdas anteriores a fevereiro de 1989. Como os preços estão congelados, o valor transacionado, nesse caso, será bancado pelas empresas, reduzindo o lucro, aumentando a produtividade ou ambos. Em suma: na ausência de mecanismos de reajuste automático, a partir de 1º de fevereiro, os salários entrariam em regime de livre negociação.
Digamos, porém, que os empregados não chegaram a um acordo por pretenderem das empresas pagamento de perdas ocorridas em 1988. Neste caso, o artigo 7º deixa claro que eles não poderão usar a via do dissídio coletivo ou da arbitragem para tal fim. Em outras palavras, os trabalhadores ficaram impedidos de pleitear perdas passadas através da Justiça do Trabalho e da arbitragem. Se tentarem, os juízes e os árbitros ignorarão o pleito, pois o parágrafo único do artigo 7º diz: "A inobservância desta vedação importa na nulidade da cláusula".
Ao limitar a recuperação de perdas passadas à via do entendimento, premiou-se a negociação e desestimulou-se o litígio. Foi um grande passo. Por negociação vale tudo. Pela via judicial ou arbitral, não.
A intenção dos formuladores do Plano foi clara. Eles tentaram evitar que, na data-base, pela via do dissídio coletivo, a Justiça do Trabalho continuasse a repor todas as diferenças entre as URPs pagas e o IPC dos últimos 12 meses mais o aumento real de praxe (7%/8%), fazendo os salários voltarem (ou ultrapassarem) o pico do início da data-base, provocando fortes pressões inflacionárias.
A solução encontrada foi engenhosa. Como a Constituição não permite limitar o poder da Justiça do Trabalho, o Plano limitou o poder das partes – o que, é verdade, também vem sendo contestado pelas centrais sindicais.
Apesar da sua engenhosidade, a fórmula do artigo 7º deixou muitos problemas pendentes. Em primeiro lugar, ela trancou a via judicial ou arbitral em relação ao passado, mas não ao futuro. Por isso, é bem provável que até o fim do ano estaremos de volta à recomposição dos salários pelos picos, a menos que, na pretendida nova lei salarial, o impedimento do artigo 7º seja estendido para o futuro.
Em segundo lugar, a decisão do Congresso Nacional ao estabelecer um mecanismo de reposição da perda de janeiro, deu a senha para se implantar no Brasil um novo e esdrúxulo sistema de indexação salarial baseado no indicador que for mais alto (IPC ou INPC). Por exemplo, uma categoria profissional com data-base em 1º de junho próximo, no caso de impasse, poderá instaurar dissídio coletivo solicitando reposição da inflação ocorrida nos meses de fevereiro a maio deste ano com base no IPC desses quatro meses. Já no mês de março, a reposição seria composta de duas partes: (a) a primeira parcela da diferença entre INPC e IPC de janeiro; e (b) a inflação de fevereiro – repetindo-se tal procedimento em abril e maio ou até mais.
Isso significa que, a partir de março, os reajustes serão maiores do que a inflação dos meses anteriores. Ademais, tais reajustes ocorrerão de maneira muito veloz, máximo de 45 dias! Trata-se de um "efeito Alfonsin" em velocidade supersônica e com aumentos reais significativos. O Congresso Nacional, sabendo ou não, inventou o mais ágil sistema de indexação salarial até então conhecido no Brasil.
Conclusão: a tendência parlamentar em favor da pré-indexação de salários, a recente iniciativa do Congresso Nacional nessa direção e a tradição da Justiça do Trabalho de reconstituir os salários pelo pico, poderão jogar o Plano Verão no chão a partir de 1º de março de 1989.
A pressão social por indexação é igualmente forte. Afinal, são 20 anos de vício nesse narcótico. Os sindicatos desejam, com razão, uma proteção contra uma eventual disparada inflacionária como, por exemplo, a indexação mensal com base no IPC do mês anterior ou o gatilho mensal com base num teto de 5%/10%. Tais salvaguardas e outras, entretanto, deveriam fazer parte dos acordos e convenções, mas não da lei. Esta, por sua vez, deveria cuidar do reajuste do salário mínimo, exigir a negociação respeitosa e leal e, finalmente, garantir a liberdade para que as partes, em seus contratos individuais e coletivos, estabeleçam quaisquer mecanismos de proteção contra a inflação.
O risco de hiperinflação ainda nos ronda. A reformulação da política salarial é matéria delicada. O Congresso Nacional precisa ter consciência das conseqüências de seus atos nesse campo. O Plano Verão colocou o Brasil mais perto da livre negociação para logo depois, o Congresso Nacional afastá-lo. Mas essa oportunidade não pode ser perdida. Duas raras condições estão presentes hoje. De um lado, a inflação deve ser baixa nos próximos meses em conseqüência do próprio Plano e, de outro, os sindicatos brasileiros foram bastante fortalecidos pela nova Constituição. Essas duas forças são extraordinariamente propícias para se começar a negociação livre e integral dos salários. Será uma pena desperdiçá-las.
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