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Publicado em O Estado de S. Paulo, 27/04/1999

O que há de errado em querer trabalhar?

Ao declarar o seu inconformismo com as pessoas que não vêem a hora de parar de trabalhar, o Presidente Fernando Henrique abriu uma discussão que vale a pena aprofundar.

Ao dizer implicitamente que os brasileiros precisam trabalhar mais anos, o Presidente tocou num fenômeno que está acontecendo no Brasil e em vários outros países - o trabalho dos idosos.

Os dados das últimas pesquisas do IBGE indicam que 40% dos brasileiros com mais de 70 anos continuam trabalhando e gerando a metade da renda da sua família.

Esse trabalho está longe de ser um "bico" eventual. Ao contrário, 62% dos homens entre 65 e 90 anos trabalham 40 horas por semana em atividades de autoconsumo, comércio, serviços e até construção civil.

Há quem defenda a idéia de que os aposentados não deveriam trabalhar, pois isso toma lugar dos jovens que precisam entrar no mercado de trabalho. Isso significa dizer que numa economia que não tem o necessário dinamismo para gerar empregos para todos, os idosos têm de ser proibidos de trabalhar, mesmo quando podem e desejam trabalhar.

Esse posicionamento ignora a grande revolução que ocorre no campo da demografia, da saúde e das expectativas das pessoas mais velhas nos dias atuais.

O Brasil está deixando de ser o País dos jovens. Em 1970, os brasileiros com menos de 15 anos respondiam por 43% da população; hoje são apenas 30%. Na outra ponta, os idosos com mais de 65 anos, que em 1970, eram apenas 3%, hoje são 5% e no ano 2.020 serão 8%.

Além do mais, as pessoas estão envelhecendo de maneira bastante diferente do que no passado. Os homens que chegam aos 55 anos, viverão até os 75, em média; e as mulheres, chegarão perto dos 80 anos. Para uma boa parcela dessa população a disposição para o trabalho ainda é grande.

Esse fenômeno é mundial. Pesquisas entre pessoas de 30 a 50 anos indicam que a esmagadora maioria pretende trabalhar enquanto puder (Eric Hubler, The New Faces of Retirement, New York Times, 03-01-99). O trabalho gera renda e preenche a vida. Como proibir essas pessoas de trabalhar?

Entre os que se preocupam com a saúde financeira da seguridade social, há quem gostaria de restringir o direito à aposentadoria aos que param de trabalhar.

Aqui surge um outro problema. As pessoas que se aposentam, consomem o produto do trabalho que realizaram no passado e que nada tem a ver com a sua disposição de continuar trabalhando no futuro.

Admitindo-se a hipótese aventada, será que, ao negar a aposentadoria para quem deseja continuar trabalhando não estaríamos forçando muitas pessoas a parar de trabalhar à contragosto ou estimulando ainda mais o mercado informal?

A enorme revolução por que passa o conceito de "população economicamente ativa", demanda reformulações profundas nas instituições atuais. O tempo em que os idosos aposentados se punham dentro de seus pijamas o dia inteiro e circulavam à esmo pela casa e pela vizinhança, sem ter o que fazer, acabou.

Nesse terreno, as instituições trabalhistas e previdenciárias precisam ser radicalmente reformadas de modo a permitir o trabalho do idoso sem afetar o trabalho do jovem e a apoiar a vontade de trabalhar dos aposentados sem conturbar as receitas da Previdência Social.

No campo do trabalho, é essencial criar condições para as empresas absorverem jovens e pessoas mais velhas com menos despesas. Em muitos países a legislação permite as empresas contratarem, por dois ou três anos, com menos encargos sociais, jovens e idosos que precisam e desejam trabalhar.

No campo da previdência vários especialistas já propuseram um modelo misto no qual os benefícios da aposentadoria venham a ser sustentados por um sistema de repartição simples e por outro de poupança individual. Esse modelo, além de mais barato, garante a saúde das finanças da seguridade social ad infinitum (Martin Feldstein, America's Golden Opportunity, in The Economist, 13-03-99)

Essas mudanças terão um impacto muito mais salutar no mercado do trabalho do que a mera proibição dos que desejam continuar trabalhando. Afinal, o que há de tão errado em querer trabalhar?