José Pastore, especialista em mercado de trabalho (foto: Gustavo Epifanio)
Poucos profissionais dominam tão a fundo as nuances do emaranhado de regras trabalhistas brasileiras quanto o sociólogo José Pastore, professor da Fundação Instituto de Administração (FIA) e presidente do Conselho de Relações de Trabalho da Fecomercio-SP. Seu currículo carrega 35 livros publicados na área – o mais recente deles (Terceirização: necessidade para economia, desafio do direito), escrito em parceria com o filho, José Eduardo Pastore –, além de consultorias para entidades de classe e passagens pelo Ministério do Trabalho e pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Em seu escritório, em São Paulo, uma edição ganha destaque em meio ao acervo pessoal: a atualização de 2015 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), o instrumento jurídico criado por Getúlio Vargas, na década de 1940, para prover garantias básicas aos trabalhadores.
Em entrevista à DINHEIRO, Pastore explica porque considera que a lei se tornou um entrave ao crescimento e mostra otimismo com o momento de crise, por enxergar nela uma oportunidade real para uma modernização na estrutura das relações de trabalho no País. "O Brasil tem potencialidades para superar os problemas, mas vai demorar e será preciso adotar soluções dolorosas", afirma. Leia a seguir os principais trechos.
DINHEIRO – A taxa de desemprego subiu de 5,3% para 7,9% desde o início do ano. A velocidade da deterioração surpreende?
JOSÉ PASTORE – Em 2011 e até 2012 quase inteiro tínhamos um apagão de mão de obra e o PIB mostrava um desempenho muito fraco. Havia uma questão intrigrante: como o desemprego não explodia se o PIB não crescia? Naquela ocasião, eu costumava dizer que isso tinha validade episódica, mas não permanente. Se assim fosse, eu rasgaria todos meus livros.
DINHEIRO – Era um artificialismo?
PASTORE – Era o resultado de um modelo econômico que promovia o crescimento através dos vários mecanismos forçados de crédito - um modelo que só tem vida longa se puder ser sustentando com base numa política de crédito mais realista. Estimular banco público e selecionar ganhadores, isso fica difícil de manter por muito tempo. A minha previsão era de que mais cedo ou mais tarde o modelo se esgotaria.
DINHEIRO – Estamos sendo confrontados pela necessidade de reformas. Há ambiente para avançar em temas intocáveis?
PASTORE – As crises dão mais clareza às causas dos problemas e geram oportunidade de mudanças. Hoje, em áreas como a da Previdência, trabalhista, burocracia, está ficando muito claro que se não encararmos com seriedade uma transformação radical, ficaremos estagnados, com o risco de virarmos uma republiqueta argentina. A Europa teve de passar por um verdadeiro cataclisma (2008-09)_para mexer em áreas sagradas.
DINHEIRO – No debate sobre a idade mínima de aposentadoria, por exemplo, o diagnóstico está feito, mas parece que não podemos mexer nisso.
PASTORE – O parlamentar foge desse tema porque teme perder votos. Mas vai chegar o ponto em que o Estado não vai poder pagar. Aí surgirá a situação em que as pessoas começarão a considerar a hipótese de perder alguns anéis para não perder os dedos. Olhe o mercado de trabalho: as pesquisas estão mostrando que metade da população já concorda em reduzir salário para não perder o emprego. E reduzir salário há três ou quatro anos era uma coisa impensável. Um tema sacrossanto. Hoje há empregados que pedem para reduzir salários para manter seu emprego. Quem sabe na aposentadoria temos de chegar a esse ponto.
DINHEIRO – Não chegamos lá ainda?
PASTORE – Na aposentadoria, creio que ainda não. São casos pontuais, de um estado ou outro que não podem pagar os aposentados. Mas ainda não há um colapso do sistema. Mas, os analistas estão antevendo esse colapso a qualquer momento.
DINHEIRO – Na esfera trabalhista, a CLT é um tabu. Há espaço para mudanças?
PASTORE – A mudança vai ser gradual. O princípio é o mesmo: só vai abrir um espaço para mudança quando a situação se agravar muito. Na Europa, esses temas também eram inatacáveis, mas os países acabaram passando reformas como, por exemplo, na Espanha, que mudou uma regra que vigorava desde 1982 - a Convenção 158 da OIT que inibe demissões. Era uma regra sagrada, tão querida quanto a CLT e mexeram nisso. Os espanhóis entenderam, depois de muito tempo, que se você impedir a troca de funcionários em uma empresa, isso bloqueia a entrada dos jovens, lembrando que o desemprego dos jovens é três vezes maior do que a média. Aqui já estamos bem próximos disso.
DINHEIRO – No Brasil, a porta de saída é muito fechada também?
PASTORE – Acho que há perspectiva de mudar. Há um mês o Congresso quase aprovou a medida que prevê que o acordo negociado seja válido tanto quanto a lei. Chegamos bem perto. Isso jamais ocorreu nos últimos 30 anos. É um sintoma de que esses assuntos estão começando a ser considerados. Há pouco tempo o Congresso Nacional aprovou a arbitragem trabalhista, que ia desafogar a Justiça e flexibilizar a resolução dos conflitos. Infelizmente o Presidente vetou. Pena. O Brasil é campeão de conflitos. Na Justiça do Trabalho, há milhões de casos. Era uma medida modernizante, mas, infelizmente foi vetada. Mas chegou perto.
DINHEIRO – Quais seriam os pontos iniciais da reforma trabalhista?
PASTORE – O ponto de início é tornar válido o que é negociado. Tem havido muita interferência dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, principalmente do Judiciário. Em muitos casos, os juízes anulam o que se negocia livremente, democraticamente. Por exemplo: há milhares de acordos que foram feitos para reduzir o horário de almoço de 60 para 30 minutos, porque convém às duas partes. A Justiça vem anulando sob a alegação de que na CLT está escrito que tem de ser de uma hora.
DINHEIRO – A Justiça do Trabalho tem um tamanho desproporcional?
PASTORE – A solução é diminuir o número de conflitos e, para tanto, colocar no acordo coletivo que as próprias partes vão tentar resolver os problemas por si mesmas, como fazem os países desenvolvidos. Não venha com essa história de anular aquilo que é negociado, porque nenhum país tão heterogêneo como o Brasil, vai conseguir fazer uma lei aplicável e ajustada a todos os setores e regiões. Deixemos as partes negociarem porque assim vão sair desse clima de desconfiança que hoje existe entre empregados e empregadores, que é muito nefasto. Se você não resolver a briga interna de uma empresa, não tem como ganhar a externa, que é a de competição.
DINHEIRO – A CLT do jeito como está hoje é um fator limitante de crescimento?
PASTORE – Não há dúvida, é uma trava. Porque gera custos adicionais, muita desconfiança e muito conflito. Gera insegurança jurídica ao investidor e ao empregado. Acho que os empresários têm sorte de não conhecer toda a legislação... Na verdade, nenhum empresário consegue dizer qual é o seu passivo trabalhista hoje.
DINHEIRO – Diante da atual conjuntura, há risco de aumentar a informalidade?
PASTORE – Acho que já está aumentando e de uma maneira preocupante. O Brasil fez um esforço brilhante de formalização nos últimos dez anos. Pena que venha perder tudo isso. Já existem sinais preocupantes. Uma situação de informalidade traz prejuízos para as pessoas, porque não contam com as proteções básicas, e gera problemas ao Estado, porque sem contribuir, os trabalhadores vão se transformar num componente de despesa para o governo - mais cedo ou mais tarde.
DINHEIRO – Jovens que estavam postergando a entrada no mercado de trabalho para estudar estão voltando a procurar vagas. Como o senhor vê esse fenômeno?
PASTORE – O efeito imediato é a elevação da taxa de desemprego. Aumenta a pressão por trabalho, o que causa intranquilidade social.
DINHEIRO – Isso mostra que já perdemos a mão do bônus demográfico?
PASTORE – Estamos queimando as últimas cartadas do bônus demográfico, perdendo uma oportunidade de ouro, porque, em geral, as nações primeiro enriquecem e depois envelhecem. N[os estamos envelhecendo antes de enriquecer.
DINHEIRO – Dá para reverter ainda?
PASTORE – Tenho a impressão que não. Porque se você olhar para o panorama geral da economia, vai ver que esta é uma crise longa. Enquanto isso, o bônus demográfico não para de erodir.
DINHEIRO – Quanto é longo para o senhor?
PASTORE – Cinco anos ou mais.
DINHEIRO – Qual é o fundo do poço para o mercado de trabalho?
PASTORE – Acho plausível vislumbrar, em uma bola de cristal precária, que o desemprego vai continuar aumentando em 2016 e pode chegar aos 10%. O emprego de 2017 depende daquilo que for feito em 2016. É uma hipótese muito ousada achar que no próximo ano vamos resolver tudo o que não conseguimos resolver em 2015, com reflexos positivos em 2017. Lembremos que 2016 vai ser ano político. Muitas medidas vão sofrer resistências dos políticos. Se essa hipótese estiver certa, 2017 ainda vai ser duro. Se pudermos ter uma pequena melhoria em 2017, podemos vislumbrar um avanço no quadro de emprego em 2018. Quer dizer, já estamos falando aí de três ou quatro anos. Então, até se normalizar tudo, vai para 2019.
DINHEIRO – Investidores costumam destacar o potencial de longo prazo do Brasil. Esse cenário ficou mais longe?
PASTORE – Acho que sim, foi postergado. O Brasil tem potencialidades para superar muitos problemas atuais, mas, para tanto, será preciso adotar soluções dolorosas, infelizmente. Dolorosas porque temos um quadro de valores de protecionismos, que não cabem dentro do PIB. Não temos condições de sustentar esses tipos de proteções, apesar do seu caráter humanitário. Elas não são realizáveis. Sem mudanças profundas, jamais daremos um salto na economia para transformar este país em altamente produtivo e com um crescimento extraordinário. É difícil chegar a isso com políticas artificiais que foram introduzidas há alguns anos, como as de crédito, subsídios e consumo.
DINHEIRO – O senhor quer dizer protecionismo também na área trabalhista?
PASTORE – Sim. Na área trabalhista, também há exageros. No Congresso, existem cerca de 1.500 projetos que só criam proteções novas, irrealizáveis. Um propõe folgar no dia do aniversário, outro no aniversário de casamento. Essas coisas não cabem no PIB de nenhum país, principalmente do Brasil, onde é preciso trabalhar muito. Temos de trabalhar mais e, sobretudo, com mais qualidade e produtividade. É isso que se impõe a todos nós. O brasileiro é trabalhador, não é preguiçoso. É preciso ter um realismo do lado das instituições, razão pela qual estou dizendo: vamos fixar na lei as proteções básicas, como trabalho do menor, seguro-desemprego, proteção da gestante, etc. e vamos deixar o restante para ser acertado entre as partes.