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Publicado no Jornal da Tarde, 23/08/00

Quanto vale a vida?

A maioria das pessoas acha que nenhum preço é alto demais para salvar uma vida. Eu mesmo raciocino dessa maneira ao pensar nos meus entes queridos.

Mas quando se coloca o assunto na dimensão econômica, o quadro muda. Na Inglaterra, uma nova droga, que custa US$ 1,800 por dose, revelou-se eficaz para salvar a vida de várias crianças. O governo britânico, porém, recusou adotar o medicamento nos programas de saúde pública por considerar que o valor da vida de uma criança é infinito, mas menor que US$ 1,800. Uma decisão controvertida, não é?

Mas, veja bem. Se colocarmos todos os recursos da medicina moderna a serviço de todos os cidadãos, isso quebra a economia de qualquer nação. Não é fantasia. Muitas sociedades já incorreram nesse erro, embora em outras áreas. O colapso da União Soviética, por exemplo, deveu-se, em grande parte, à alocação de 65% dos recursos públicos na área militar durante 20 anos (1960-80), quando os Estados Unidos gastaram apenas 8% nessa área.

Para acompanhar os avanços da medicina, os investimentos em saúde estão subindo de maneira assustadora. Além disso, doenças de extrema gravidade aparecem de modo repentino e ameaçador, como é o caso da hepatite C, AIDS e Febre Hemorrágica Ébola, fazendo explodir as despesas com saúde. Hoje, os Estados Unidos gastam cerca de 14% do PIB nessa área - quase US$ 1,5 trilhão.

A aplicação de todos os conhecimentos disponíveis para cuidar de todos os americanos dobraria essa cifra em cinco anos: US$ 3 trilhões. Isso é possível? É claro que não. Se dobra agora, dobrará novamente em poucos anos, pois os avanços da medicina não param.

E daí? Como se resolve o problema moral que envolve essa decisão? Como negar aos doentes a cura de suas doenças? Como determinar o limite de gastos: 20%, 25%, 30% do PIB?

Essas questões vão muito além do campo econômico, adentram no da filosofia, e nos conduzem a examinar o valor da vida, um assunto ainda mais complexo.

Resolvi pesquisar o tema. Encontrei um filósofo que se dedica a conceituar o que é a vida (vejam que arrojo!) para, em seguida, examinar as bases de uma (necessária) limitação dos gastos destinados a manter essa mesma vida (Leslie Armour, "Morality, economics, and life", in International Journal of Social Economics, Vol. 26, no. 10/11, 1999). Foi uma leitura fascinante e, ao mesmo tempo, angustiante.

Para surpresa minha, porém, aquele filósofo tem uma veia pragmática bastante vigorosa e, em muitos aspectos, é mais prático do que muitos economistas. Não há espaço para examinar todos os seus “insights”. Destacarei apenas o tratamento que dá a dois casos limítrofes - o da vida vegetativa e o das doenças geradas pelas próprias pessoas.

Para o primeiro caso, o autor defende que, por razões morais, o paciente não pode decidir sobre o fim da sua vida (muito menos quando está inconsciente). Isso não cabe tampouco aos seus familiares ou aos profissionais da saúde. Entretanto, conclui, a decisão desse dilema cabe a todos eles. É através de muita consultação (serena) que as pessoas devem decidir se desejam prolongar a quantidade de tempo em detrimento da qualidade de vida.

Para o segundo caso, Armour argumenta que todos têm o direito de escolher seus próprios estilos de vida, até mesmo os que levam o fumante ao câncer, o promíscuo à AIDS e o alpinista à tetraplegia. Como a todo direito corresponde uma obrigação, essas pessoas teriam de pagar um extra para a seguridade social que cuida da sua saúde, o que, aliás, já é regra nas seguradoras privadas.

São sugestões teóricas, cheias de complicações práticas. Ainda assim, penso que os dois conceitos merecem reflexão. Transacionar qualidade por quantidade e atrelar deveres especiais a direitos especiais fazem sentido para mim, abrindo um caminho para se enfrentar questões tão inquietantes. E para você, qual é o valor da vida? Infinito?