Publicado em O Estado de S. Paulo, 03/05/2005.
A fé como capital social
A morte de João Paulo II e a eleição do papa Bento XVI criaram momentos de grande comoção no mundo. Durante três semanas a imprensa abriu enormes espaços para discutir os rumos da Igreja Católica, os estilos dos Papas e a importância da religião na construção da paz.
Professores de teologia e filosofia, que passam a vida no anonimato, vieram a público para nos ajudar a compreender o significado dos valores religiosos no mundo moderno. Enquanto isso, os especialistas da área econômica, que têm presença diária nas páginas dos jornais, continuaram discutindo os destinos das nações.
Esses profissionais fazem parte de dois mundos que nunca conversam entre si: o mundo da fé e o mundo da economia. Há razão para essa separação? Penso que não.
As transações econômicas se baseiam em instituições formais e informais. Dentre as primeiras estão as leis, o governo, as agencias reguladoras, a Justiça e outras que todos conhecem. Como exemplos das segundas estão a fé, a confiança e a cooperação - que integram o "capital social" das nações.
Pensando bem, a fé, a confiança e a cooperação constituem o alicerce da economia. A atividade bancária, por exemplo, vive da fé e da confiança que os clientes depositam nos bancos. Sem elas, os bancos quebrariam, instalando-se o caos. Por isso, clientes e banqueiros cooperam entre si, uns respeitando os princípios do outro – em puro ato de fé.
A fé, a confiança e a cooperação desempenham outros papeis como, por exemplo, o de substituir a Justiça. Quando há fé, confiança e cooperação, os agentes econômicos não precisam recorrer aos tribunais. A referida substituição é muito eficiente, pois se tudo tivesse de ser decidido pela Justiça, os custos para a sociedade seriam intoleráveis.
Fé, confiança e cooperação são edificadas ao longo do tempo através da internalização de valores sociais. Guiadas por eles, as pessoas tendem a evitar a mentira, a trapaça e a corrupção. Isso também é parte do capital social.
Uma sociedade dispõe de muito capital social quando a fé, a confiança e a cooperação são generalizadas. Nesses casos, eleva-se o respeito pelo próximo, a convergência dos contrários e a responsabilidade para com os deveres, a moralidade e a ética - o que também integra o capital social.
Fé é acreditar sem muito questionamento. Confiança é acreditar com base em observações passadas. Cooperação é unir o que tende desunir.
Para os economistas, o conceito mais estranho é o da fé embora esta esteja presente em todas as ações econômicas e também na formulação de suas teorias. Nenhum deles conseguiu provar que o homem sempre maximiza – mas todos acreditam nisso. Os físicos, igualmente, têm fé em princípios que são essenciais na sua ciência, mas que não conseguem demonstrar. O religioso tem fé na existência de Deus que não pode ser dissecado. Os agnósticos, por mais que duvidem, têm fé na regularidade da natureza.
A fé tem várias fontes. A religião é apenas uma delas. Mas, no cotidiano, é uma das mais utilizadas. É com ela que os seres humanos se tranqüilizam diante do inexplicável. É a fé que proporciona o conforto emocional. É dela que saem muitos valores morais. É com ela que as pessoas se envolvem com organizações que, superando os interesses individuais, buscam acomodar os interesses coletivos. Muitas condutas se baseiam em normas visíveis. Outras não.
A fé religiosa é construída de normas preservadas pelas Igrejas que levam avante os princípios básicos das religiões. As próprias religiões integram o capital social.
Seria errôneo, porém, atribuir-se às religiões uma garantia automática de condutas solidárias. Os seres humanos, muitas vezes, se digladiam exatamente por causa de disputas religiosas. Mas é razoável admitir-se que as Igrejas, de um modo geral, funcionam como cultivadoras da fé, contribuindo assim, para a formação da confiança e da cooperação - que não são valores palpáveis, mas são essenciais para o sucesso econômico. Uma nação sem fé, sem confiança e sem cooperação é uma nação pobre em capital social.
João Paulo II e Bento XVI nada mais são do que profissionais da fé e, como tal, investidores de peso no mercado do capital social. Por isso, penso que os teólogos e os economistas ganharão muito se, daqui para frente, conversarem mais e trocarem idéias e experiências sobre capital social, o que beneficiará sobremaneira a sociedade como um todo.
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