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Publicado no Jornal da Tarde, 01/02/2006.

Humanidade em segundo plano

O que aconteceria se você morasse na China e precisasse tratar uma doença grave, ali chamada de "da bing"?

Lamento dizer que seu futuro seria muito sofrido. Como regra geral, o sistema de saúde chinês não aceita pacientes com doenças graves - câncer, enfarte, derrame cerebral e outras do mesmo gênero. Não há recursos para curar tais enfermidades. Quem contrair uma delas, terá seus dias contados. Isso vale para adultos e crianças. É isso mesmo. A regra é deixar morrer.

Ao lado da falta de recursos, há, como se sabe, o excesso de gente. Mais de dois terços dos 1,3 bilhões de chineses não estão cobertos por nenhum tipo de seguro de saúde, nem público, nem privado. No passado, o Estado e as empresas estatais cobriam o custo do tratamento para seus empregados - mas não para seus familiares. A partir dos anos 80, na busca da redução de custos e elevação da competitividade, essa prática foi desaparecendo. Hoje, são apenas 110 milhões os chineses que possuem seguros para tratar da própria saúde - nunca de seus familiares (Andrew Browne, "China´s workers see thin protection in insurance plans", Wall Street Journal, 30/12/2005).

Em 1998 o governo chinês aprovou um plano de saúde para os operários das grandes empresas urbanas que cobre não mais do que 20% dos trabalhadores. Na média, os empregadores contribuem com 7,5% e os empregados com 2% do salário. Os membros da família continuam de fora.

No caso de doenças corriqueiras, o seguro cobre de 70% a 80% das despesas de hospital e de remédios comuns. Os segurados pagam 100% das despesas (em dinheiro) e solicitam o reembolso que lhes cabe mediante a apresentação dos documentos.

Mesmo para pessoas de classe média, raramente isso é possível. Por essa razão, os pacientes acometidos por "da bing" cujo tratamento sabidamente gera altas despesas são obrigados a sair dos hospitais. Muitos nem chegam a entrar porque, para tanto, são obrigados a fazer depósitos de alta monta.

Em 2003, He Guofu, funcionário de uma grande empresa de construção, deu entrada em um hospital, seis horas depois de ter sofrido um derrame cerebral. O cirurgião comunicou à esposa que o homem precisava de uma cirurgia (para descomprimir o cérebro) que custaria o equivalente a US$ 7,000, a serem depositados adiantadamente. O médico avisou ainda, que as chances eram de apenas 50%.

Sem ter o dinheiro, a mulher voltou para casa com o marido, mas, conseguiu o recurso emprestado depois de dois dias. Voltando ao hospital, o médico comunicou-lhe que era tarde demais. O cérebro do paciente estava irreversivelmente lesionado. He Guofu vegeta na cama até os dias de hoje (narrado por Andrew Browne).

Às vezes me pergunto: será que o espantoso crescimento chinês de 9,5% ao ano não decorre em grande parte da inexistência das proteções básicas como, por exemplo, previdência social e saúde? Em qualquer país, esses são dois itens que costumam gerar pesados déficits nas contas públicas.

Veja o caso do Brasil. Com o novo salário mínimo, o déficit do INSS para 2006 será de R$ 50 bilhões que terão de ser emprestados pelo governo a juros altíssimos ou retirados do sofrido superávit primário. Você já imaginou se o governo pudesse contar com essas R$ 50 bilhões para fazer investimentos em infra-estrutura, educação, saúde e segurança pública?

Ninguém nega que a China vem formando uma classe média em alta velocidade e que já chega a 300 milhões de pessoas. Mas é preciso lembrar que nem mesmo essa classe desfruta das proteções mínimas para atender a saúde e a velhice. Sem falar, no um bilhão de pessoas que estão fora da classe média e de todos os sistemas de proteção.

Não há a menor dúvida. O sistema de saúde da China tornou-se um fardo pesadíssimo para o Estado que, dentro do seu autoritarismo, decidiu não mais assumir. Esse é, inegavelmente, um dos mais sérios problemas do país. A própria estabilidade social fica comprometida na medida em que se alastra a lei da morte com data marcada para quem contrai uma doença grave. É uma das brutalidades que ainda persistem no país que está se tornando a locomotiva do mundo. É irônico. Irônico e triste ao mesmo tempo.