Discurso de Posse na Academia Paulista de Letras,10/03/2004
Discurso de Posse na Cadeira 29 da Academia Paulista de Letras
Excelentíssimo Senhor Professor Erwin Theodor Rosenthal, digníssimo Presidente da Academia Paulista de Letras.
Ilustres acadêmicos, autoridades presentes, minha família, caros amigos.
Ao longo de minha vida cometi vários atrevimentos. Casei-me com a amada Wilma, quando minhas finanças mal davam para uma vida de solteiro.
Parti logo para a paternidade e, depois 9 meses, nasceram nossos queridos gêmeos, Silvia Cristina e José Eduardo, no momento em que, a duras penas, as economias sustentavam o casal.
Wilma e eu repetimos o feito, ganhando a adorável Ana Claudia, quando, durante o doutorado nos Estados Unidos, recebíamos uma diminuta bolsa de estudos para manter 5 pessoas.
Mas, confesso, senhor Presidente, nenhuma das ousadias superou a audácia de me inscrever na Academia Paulista de Letras. Afinal, é patente a minha pequenez diante da rica plêiade de intelectuais que compõem este nobre sodalício, por onde passaram tantos gênios da cultura brasileira.
Senhor Presidente, prezados acadêmicos:
Como profissional da sociologia do trabalho, passei 50 anos coletando dados, trabalhando com números e testando modelos estatísticos. Minhas horas de literatura foram sempre roubadas das horas de ciência. Mas constituíram, sem dúvida, as mais proveitosas por terem introduzido, na pesquisa social, a indispensável dimensão humana.
Por saber existir nesta Casa um ambiente de alta densidade intelectual e de sincera amizade, estou certo poder trabalhar aqui minhas fraquezas no campo das letras e, quem sabe, contribuir no campo das ciências sociais.
O que tenho a oferecer é o compromisso de depositar na Academia Paulista de Letras tudo o que aprendi, aliás, meu único patrimônio, formado pelo estímulo de meu pai Clemente - professor de português - e de minha mãe Adelina, supervisora de minha educação. Mas terei de pedir paciência a Vossas Excelências. Farei muitas perguntas impertinentes para obter respostas pertinentes. Afinal, quem não pergunta não aprende.
Paulo Eiró - O Patrono
(1836-1871)
Paulo Francisco de Salles Eiró - o patrono da cadeira 29 que ora assumo - foi também um homem inquieto, questionador, democrático e, ao mesmo tempo, um raro ser humano, inspirado poeta e belo dramaturgo - tão bem biografado por Affonso Schmidt.
O nosso patrono nasceu em 1836 em Santo Amaro, onde, por justa homenagem, foi erguido o Teatro Paulo Eiró.
Ao estudar sua vida, adorei a mescla de um amor romântico, não correspondido, com um espírito combativo, que lutou pelas causas sociais, em especial, pela libertação dos escravos.
Para a sua adorada Musa, chamada Ambrosina, mas, por ele "batizada" de Nectária, o poeta não pôde entregar o seu coração, mas deixou, para a eternidade, os mais carinhosos versos. Leio alguns deles.
Nectária, és meu sonho de todo o instante,
Único aroma de minha mocidade,
Nectária, como eu te adoro!
Como me acalmas as dores!
Não troco por teus amores
Quantos amores houver!
És flor, mas não flor da terra,
Um anjo, que não mulher.
É inacreditável que diante de tanta beleza, tenha ela escolhido outro marido... Paulo Eiró foi um eterno prisioneiro da ausência de Nectária.
Ah! Essas mulheres... O seu amor é sempre uma chama, mas nunca se sabe se a chama vai aquecer o coração do homem ou queimar-lhe a casa...
Na luta contra a escravidão, chamou-me a atenção, a visão prospectiva de Paulo Eiró, estampada no prefácio de sua peça teatral, "Sangue Limpo", onde diz:
"Penso que o presente deve ser preparador do futuro... É dever do poeta, tanto quanto do estadista..., combater os preconceitos iníquos que se opõem à emancipação completa de todos os indivíduos... Essa grande revolução não há de ser completada pelos mais mancebos de hoje; restar-nos-á, porém, a glória de haver-lhe aplainado o caminho".
Paulo Eiró morreu em conseqüência de grave doença mental. É difícil saber o que mais pesou - se a tristeza de ver Nectária em braços alheios ou o sofrimento de ver a libertação dos escravos passar longe do Brasil. Faleceu aos 35 anos - na flor da idade - como ocorreu com tantos gênios de sua época.
Hoje, os brasileiros vivem, em média, 71 anos. Que diferença! Mas, infelizmente, muitos jovens continuam morrendo cedo, devido à brutalidade da vida moderna. Se outrora eram a tuberculose, o tifo, a febre amarela e a doença mental, hoje são o crime, a droga e os acidentes de trânsito que destroem a nossa juventude.
Valdomiro Silveira
(1909-1941)
O Brasil sempre foi uma terra de contrastes, marcada por surtos de progresso, ao lado de quadras de estagnação, retrocesso e injustiça.
Vejam a vida de Valdomiro Silveira, primeiro ocupante desta cadeira em 1909. Começou sua carreira como promotor público em Santa Cruz do Rio Pardo. Por ter contrariado a vontade de uma fazendeira rica que mandara matar a amante de seu marido e a filha dos dois, o jovem promotor teve de sair da cidade, tamanha foi a pressão política exercida pela poderosa senhora.
Mas foi essa perseguição que aguçou em Valdomiro Silveira os ideais de justiça, levando-o a uma luta ferrenha pela liberdade. Transferido para São Paulo, aproximou-se de Martins Fontes, Euclydes da Cunha, Amadeu Amaral, Julio Mesquita e Cornélio Pires e, com eles, não só cultivou as belas letras como avançou nas suas convicções democráticas.
Em Santos, onde viveu por muito tempo, foi líder da Revolução de 1932, sonhando e lutando por um Brasil governado por princípios lastreados na vontade do povo, e não no arbítrio de um ditador.
Eleito Deputado Federal à Assembléia Nacional Constituinte, não exerceu o mandato devido à convocação de Armando Salles de Oliveira para as pastas da Educação e, mais tarde, da Justiça.
Foi também Deputado Estadual, vice-presidente e presidente da Assembléia Constituinte de São Paulo
Em meados de 1937, Armando Salles de Oliveira lançou-se candidato à Presidência da República, recebendo o apoio de Valdomiro Silveira, Mario de Andrade, Guilherme de Almeida, Monteiro Lobato, Plínio Barreto, Cassiano Ricardo e outros intelectuais de renome que fundaram o jornal "O Anhanguera" e o "Grupo Cultural Bandeira". Entretanto, o apoio durou pouco, pois, logo em seguida, Getúlio Vargas instalou o Estado Novo. O jornal foi fechado, Salles de Oliveira foi preso e exilado, e Valdomiro perdeu o mandato. Mas, não esmoreceu. Continuou mais democrata do que nunca.
Aliás, São Paulo sempre contou com gente democrática - gente que até hoje, cultiva a liberdade e faz o que precisa ser feito. Esse espírito de independência surgiu de necessidades peculiares dos paulistas. Honório de Sylos, que ocupou a cadeira 6 desta Academia, explica que a cidade de São Paulo sofreu um prolongado isolamento geográfico, espremida pela parede da Serra da Mantiqueira e pelo abismo da Serra do Mar. Era difícil chegar ao litoral e empreender uma viagem a Portugal, por exemplo, que, além de insegura, incerta e onerosa, levava três meses.
Neste 2004, quando comemoramos os 450 anos da cidade, convém lembrar que a população de São Paulo ficou minúscula por mais de 300 anos. Começou com apenas 100 almas. E, durante, os primeiros três séculos, cresceu só 97 pessoas por ano. É o que São Paulo cresce atualmente a cada duas horas.
Compartilho da tese que atribui ao isolamento prolongado, a psicologia social do paulista, reconhecidamente autônomo, deliberado e voltado para a construção do futuro. Não é à toa que São Paulo foi o berço da independência do Brasil. Não foi aleatória a marcha das Entradas e Bandeiras a partir de São Paulo, garantindo a imensidão do território nacional. Não foi ocasional a ocorrência, neste Estado, da Revolução pela Liberdade, em 1932. Dali para frente foi um crescimento vertiginoso. Hoje a Capital tem 11 milhões de habitantes e o Estado quase 40 milhões.
Fiz essa digressão para mostrar que, faça chuva ou faça sol, os paulistas querem trabalhar para, com isso, preservar sua liberdade. Daí a emergência de tantos guerreiros da democracia neste pedaço do Brasil.
Voltando a Valdomiro Silveira, na literatura, sua grande marca foi a graça com que retratou os costumes e o modo de ser do caboclo paulista. Passou a vida anotando as expressões, os jeitos e trejeitos dos réus e testemunhas que compareciam aos tribunais.
Os livros de Valdomiro Silveira figuram em um alto pedestal no campo da literatura regional, destacando-se, dentre outros, "Os Caboclos" (1920), que reúne histórias pitorescas narradas no linguajar interiorano, como é o caso de um caboclo, tido como valentão, que entrou no bar de Anna Triste, "fez um ronquinho, limpou a goela, bateu o rabo de tatu no balcão e gritou:
- Bom dia, nh´Anna!
- Bom dia.
- Me dê já meio martelo de pinga: sinão, sinão...
Anna Triste tirou da gaveta uma garrucha Laporte com os dois gatilhos arreganhados na boca do estômago do valentão, e perguntou:
- Sinão o quê, seu poaia? (antipático)
- Sinão não bebo, uai!
Luciano Gualberto
(1941-1959)
Valdomiro Silveira foi sucedido por Luciano Gualberto, um extraordinário médico e administrador público que, dentre os vários cargos que ocupou, destaco o de Reitor da Universidade de São Paulo.
Mas Gualberto fora colaborador de Arnaldo Vieira de Carvalho e Alfonso Bovero na criação da Faculdade de Medicina da mesma Universidade. Especializou-se em urologia, tendo escrito e traduzido inúmeras obras nesse campo.
Além de sua competência científica, Luciano Gualberto foi um agradável professor, que entremeava suas aulas com estórias de muito calor humano. De fato, o bom professor não é aquele que só implanta fatos na cabeça dos alunos, mas o que provoca neles a curiosidade, a imaginação e a criatividade.
A veia social do grande mestre despertou cedo. Sua tese de doutoramento, aprovada em 1909, foi sobre "A Proteção do Operário em Casos de Acidentes do Trabalho". Inspirado nessa obra, o governo editou um Decreto-Lei (DL 3.724) que tratava da proteção aos acidentados. Mas isso foi em 1919 - dez anos depois. Como se vê, a demora em decidir não é invenção dos governos de hoje.
Os acidentes da época eram devastadores devido à rudeza do ferramental da agricultura, ao fogo errático das forjarias, aos perigosos andaimes da construção civil e tantos outros fatores de risco. A devastação permaneceu por vários anos. Não muito distante, ao longo da década de 90, 39 mil brasileiros que saíram de casa para trabalhar, não voltaram. Morreram trabalhando: 39 mil em dez anos!
Esses são os casos notificados. Até hoje, a grande maioria dos acidentes de trabalho não é notificada. Os estragos são brutais para os trabalhadores, as famílias e a economia do país. Pesquisa recente mostrou que os acidentes do trabalho custam ao Brasil 25 bilhões de reais por ano! São 100 bilhões de reais a cada quatro anos. Uma fábula de recursos! Sem contar a dor, o sofrimento e as vidas, que, evidentemente, não têm preço.
Nos últimos tempos, os números melhoraram. Eficiência? Não, infelizmente. É irônico dizer que a redução do número de acidentes resultou, em grande parte, de uma lei que desestimulou a notificação por parte das empresas (Lei 6.367 de 1976). Um absurdo.
No Brasil é assim. Quando a febre está muito alta, troca-se o termômetro... Na inflação, dá-se o mesmo. Quando o preço do chuchu dispara, tira-se o chuchu da lista do custo de vida. E a inflação baixa. É assim que os tecnocratas demonstram a sua genial criatividade...
Além de médico e professor, Luciano Gualberto foi um homem de vida pública e de ação enérgica, como era o seu jeito de ser - sempre falante, direto e contundente.
Foi vereador em três legislaturas, deputado estadual, vice-prefeito, prefeito interino e secretário da saúde e da educação.
Saúde e educação foram suas grandes paixões. Perdão. Não posso omitir a sua vocação de poeta - poeta das horas vagas, como se auto-definia. Ele costumava brincar, dizendo que suas poesias saíam sempre de "pé quebrado" porque, como urologista, não dominava as ferramentas dos ortopedistas...
Pura modéstia. As criações literárias de Luciano Gualberto foram simples, mas retrataram seu diuturno convívio com o sofrimento humano nas clínicas, nos centros de saúde e nos hospitais, como se nota nos seguintes versos:
Eu conheço o sabor da lágrima e do riso,
Tenho rido e chorado e, assim, dessa maneira,
Ora tendo o caminho eriçado, ora liso,
Senti as sensações de uma existência inteira.
Ataliba Nogueira
(1959-1983)
Depois de Luciano Gualberto, a cadeira 29 foi ocupada pelo grande jurista e homem de fé - José Carlos de Ataliba Nogueira.
Ataliba Nogueira iniciou sua carreira como professor, lecionando no Ginásio do Estado da Capital e, mais tarde, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde se formou e se tornou catedrático de Teoria Geral do Estado.
Ataliba negava o materialismo dialético que pregava a hegemonia do Estado. Ao mesmo tempo, repudiava o anarquismo que pretendia chegar à liberdade sem normas. Reconhecia o papel regulador do Estado, mas rejeitava o Estado onipotente.
A vida de Ataliba Nogueira foi marcada por uma rica mescla de jurista, jornalista e ensaísta, destacando-se sua obra de referência sobre Antonio Vicente Mendes Maciel - o Antonio Conselheiro publicada em 1974.
Baseando-se em manuscritos inexplorados por Euclydes da Cunha quando escreveu "Os Sertões", Ataliba Nogueira revelou um Antonio Conselheiro diferente, que nada tinha de bronco, louco e ignorante, tratando-se, sim, de um católico fervoroso, caridoso e defensor intransigente da religião como base da formação do caráter do homem e do Estado. Não foi um monarquista gratuito, mas sim um lutador contra uma república, recém-proclamada (1889), que, ao separar a Igreja do Estado, passou a oprimir os fiéis e a desvalorizar os princípios do catolicismo.
Ataliba foi também um homem de ações práticas na Assembléia Nacional Constituinte de 1945 e nos vários cargos públicos que ocupou no Estado de São Paulo e também na ONU - Organização das Nações Unidas.
Da sua volumosa obra no campo do direito, é difícil extrair o mais importante. Gosto muito do seu livro clássico "O Estado é um meio e não um Fim", do qual leio o seguinte trecho:
"O indivíduo não foi feito para o Estado, mas sim o Estado para o indivíduo, para seu bem estar moral e material, para a sua felicidade. Não é o Estado que cria o direito... O direito não nasce com o Estado, mas com o homem... O Estado não é o fim do homem; sua missão é ajudar o homem a conseguir seu fim".
Ibiapaba Martins
(1983-1985)
Depois de Ataliba Nogueira, cultivador da doutrina cristã, ocupou a cadeira 29 o jornalista e advogado Ibiapaba Martins, defensor do materialismo dialético. É o ecletismo da Academia Paulista de Letras. Idéias divergentes, sem dúvida, mas todas em busca da justiça social.
Ibiapaba Martins chegou à Academia com romances bem escritos, permeados por insinuantes histórias de amor e ricas descrições dos movimentos sociais das décadas de 40 e 50, espalhados em seus livros "Falam os Muros da Cidade" (1950), "Sangue na Pedra" (1955), e "A Flor e o Estandarte"(1975), dentre outros.
Ibiapaba foi um crítico ferino dos políticos aproveitadores. No seu livro "Carta para a Mãe do Tempo" (1980), encontrei uma conversa pitoresca entre um deputado-empresário, Eduardo Militão, e dois jovens. Militão era um homem rico que, com um simpático cinismo discorria sobre tudo, inclusive sobre verdades. Naquela conversa, tentava convencer os dois jovens - um jornalista, outro publicitário - a montarem um escritório para assessorar políticos no Congresso Nacional, usando os seguintes argumentos:
Na Câmara [dos Deputados] temos colegas semi-analfabetos, que necessitam de assessores. Mesmo os alfabetizados mal têm tempo de elaborar seus discursos e anteprojetos. Dependem da [ajuda] de jovens como vocês".
"A propaganda [tem] um importantíssimo papel no progresso do País... Vocês são mestres na arte de levar o povo a pensar desta ou daquela maneira... e especialistas na utilização de estrelinhas para destruir reputações". [Venham trabalhar para os deputados].
Há alguma atualidade nisso? Deixo a resposta por conta do nobre público.
Ibiapaba Martins foi criado no meio de revoluções - a de 1924, de Isidoro Dias Lopes, a de 1930, de Getúlio Vargas e a de 1932, a que buscou restaurar o respeito humano. Aprendeu a acreditar no Estado verdadeiramente democrático e contestou duramente os governantes arbitrários.
É triste verificar como essa mesma luta marcou a vida de tantos acadêmicos desta Casa. Digo triste porque nos últimos 74 anos de história republicana, tivemos cerca de 11 mil dias governados pelo voto direto e mais de 15 mil dias governados pelo voto indireto e pela força do arbítrio.
Nossa democracia ainda é tênue. Várias vezes, os Vice-Presidentes governaram mais do que os Presidentes. Marco Maciel, por exemplo, esteve à frente do governo durante 339 dias, enquanto Jânio Quadros presidiu a Nação durante 206 dias.
Mas tudo indica que esse recorde será batido pelo atual vice-presidente, José Alencar... Ah, essas viagens... O que será do nosso Presidente com a nova e bela aeronave...?
Ibiapaba Martins, com razão, lamentava que a democracia estivesse demorando para chegar ao Brasil, em grande parte, devido ao atraso educacional. Permitam-me citar um dado. Em 1850, os Estados Unidos tinham 90% de sua população alfabetizada enquanto que o Brasil tinha 90% de analfabetos. Isso explica, em larga medida, a diferença de desenvolvimento entre as duas nações. A educação é a mola do progresso econômico e o alimento da democracia social. As nações que desprezam a educação, perdem o passado e anulam o futuro.
Francisco Brasileiro
(1985-1989)
Francisco Brasileiro foi o quinto ocupante da cadeira 29. Também gostava do interior, das artes regionais, do feitiço da mata. Foi um sertanista por excelência e um bom romancista.
De suas caminhadas pelo sertão, enviava radiogramas, publicados pelo jornal "O Estado de S. Paulo", que, mais tarde, integraram as obras "Na Serra do Roncador" (1938), "Monografia Folclórica sobre o Rio das Garças" (1948) e "Os Bruxos" (1983), dentre outras.
Nas suas aventuras, mata adentro, o "Chicão" como era tratado pelos amigos, enfrentou a malária, o tifo e a febre amarela. É triste verificar que o Brasil de hoje ainda se debate com enfermidades preveníveis. Em pleno século XXI, a malária acomete meio milhão de brasileiros todos os anos; a doença de Chagas 5 milhões; e a esquistossomose, 6 milhões.
Mas, para enfrentar as agruras das doenças e o mistério do sertão, o Chicão, usava a energia do seu reconhecido espírito positivo para ver o mundo com invejável otimismo como se pode observar nestes versos:
Vou andar de déu em déu
na terra como no céu
em cima do meu cavalo,
debaixo do meu chapéu.
Quem monta as coisas sou eu.
Da vida não digo adeus
E, pra deixar de ser homem,
Já passo logo a ser Deus.
Como diz Mário Donato, Francisco Brasileiro viveu como se nunca fosse morrer. E, depois que entrou para esta Casa, então, confiou cegamente na imortalidade dos acadêmicos...
Domingos Carvalho da Silva
(1989-2003)
Domingos Carvalho da Silva, a quem tenho a honra de suceder, nasceu em Gaia (Portugal) em 1915, naturalizou-se brasileiro em 1937, e faleceu em São Paulo no ano passado.
Menino ainda, foi sempre o escolhido para recitar poemas de Castro Alves, Raimundo Correa e Olavo Bilac nas festas do Grupo Escolar da Consolação, (Capital de São Paulo) e em outras escolas, inclusive na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde se formou.
Homem de vasta cultura, é reconhecido como um grande poeta pelos próprios poetas. Sua obra "Múltipla Escolha" reúne uma extraordinária seleção de poemas.
Dado o enorme amor que dedicou à poesia, tenho a impressão que ele ficará feliz ao saber que, nesta solenidade, o seu humilde sucessor leu para o público alguns trechos de "O Poeta" e do "Canto de Louvor da Poesia", publicados na Revista desta Academia, respectivamente, em 1992 e 2003:
Este grave ofício de poeta
Que exerço enquanto o tempo vai
Dando mais terra à minha sombra,
Não o aprendi com meu pai.
Este meu álibi de cantar
Para ausentar-me do que sou,
De minha mãe não o herdou
O filho rebelde e sem lar.
Este ritmo que celebrei
No contraponto da viola,
Jamais aprendi na escola
E a mim mesmo ensinei.
Sou inventor do que sou
E, embora neto de avós,
Tenho de próprio a minha voz,
bússola do Norte aonde vou.
Quero a poesia em essência
Abrindo as asas incólumes.
Boêmia, perdida ou tísica,
Viva ou morta, amo a poesia.
Senhor Presidente, caros acadêmicos:
É hora de terminar. Com evidente limitação, tentei reverenciar os meus brilhantes antecessores. O estudo de suas obras bastou-me para elevar o senso de responsabilidade com que assumo a cadeira 29. É meu desejo levar adiante o magnífico trabalho de todos eles. A nossa cultura precisa penetrar fundo na juventude de hoje, assim como a nossa democracia precisa avançar muito para se tornar mais justa.
Todos sabem que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. As causas são profundas e se ligam a problemas que vêm de longe, dentre eles, a educação precária.
Temos de melhorar a qualidade de nosso ensino para poder iluminar as novas gerações. A Idade Média foi considerada a Era da Escuridão não por falta de luz, mas porque os homens recusaram vê-la.
Senhor Presidente, ilustres acadêmicos:
Espero que o meu atrevimento seja compreendido como um gesto de quem deseja aprender. Aliás, eu estava ainda aprendendo quando dei a última aula na Universidade de São Paulo. Não me conformei com a aposentadoria. Voltei a lecionar e a ouvir os alunos. Meus colegas apoiaram. Aliás, eles sempre disseram que o convívio intenso com os economistas da Faculdade de Economia e Administração, me fizera esquecer boa parte da sociologia sem dar tempo para aprender toda a economia.
Eles têm razão. O ser humano que pára de aprender vira obsoleto, tenha ele 20, 30, 40 ou 50 anos. Quero seguir o exemplo deste grande brasileiro, Miguel Reale, que, com 93 anos, não desiste de aprender e, por isso, não pára de ensinar. É esta sede de aprender e este impulso de ensinar que me levaram a escolher Vossa Excelência, caro Professor, para me receber nesta Academia. Este é, sem dúvida, um dos momentos mais felizes de minha vida.
Finalizo com um profundo agradecimento à acolhida oferecida pelo Senhor Presidente e pelos nobres companheiros deste templo do saber que tanto zela pelas letras, história, filosofia e ciências em São Paulo, que é a Academia Paulista de Letras.
Aos meus parentes e amigos que aqui compareceram, quero registrar um comovido agradecimento. Sempre recebi deles o estímulo para descobrir, o apoio para inventar e a paciência para me escutar. Muito obrigado.
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