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Publicado no Jornal da Tarde, 28/05/2003.

Pena de morte para doentes

A pneumonia asiática (SARS) foi considerada pela nova diretora da Organização Mundial da Saúde, Gro Harlem Brundtland, como uma questão de segurança internacional, sendo que o seu combate exige uma operação de guerra, emendou David Heymann, diretor de doenças transmissíveis daquele órgão.

A China tomou essas palavras ao pé da letra. A partir de 15 de maio de 2003, será fuzilada toda pessoa que recusar a quarentena imposta pelo governo para os casos suspeitos e confirmados de pneumonia asiática.

É jogo duro. Afinal o que está em risco é uma população de mais de um bilhão de pessoas e uma economia que é a locomotiva do mundo. A doença mata 45% da população em geral e 65% dos que têm mais de 60 anos. Dos 8.200 casos da SARS registrados pela OMS, 5.300 (65%) estão na China. Dos 700 óbitos contabilizados, a metade ocorreu naquele país.

O mundo que ficou assustado com a SARS mas espantou-se ainda mais com a decisão chinesa. O que pode justificar matar uma pessoa que está doente? Não deveriam os doentes ser os primeiros a receber proteção?

Tais perguntas têm muita lógica. Mas não é essa a lógica coletivista do regime chinês. Na China, fuzilamento é coisa de rotina. Toda e qualquer pessoa que ameace o bem estar coletivo é liquidada. Durante 15 dias que passei na China no ano 2000, o governo fuzilou 17 presidentes de empresas estatais por causa de corrupção - o que foi anunciando amplamente na televisão, rádio e jornais chineses que chegam a ter 300 milhões de exemplares!

Como a corrupção é endêmica, o governo prossegue na matança até hoje. Em 2002, foram executadas 3.248 pessoas em todo o mundo. Destas, 1.921 (60%) foram fuziladas na China. Os Estados Unidos ocupam o segundo lugar com cadeira elétrica e injeção letal, mas ficam bem aquém da China. Em 2002, foram executados 150 cidadãos americanos. Em terceiro lugar veio o Paquistão com 140 mortes. Nada comparável aos números chineses.

A Anistia Internacional acredita que as estatísticas da China estão subestimadas e combate veementemente a pena de morte no mundo inteiro. Imagine o que a Anistia fará agora quando a China decidiu matar quem é afetado ou suspeito de pneumonia?

A pena de morte é ainda praticada em mais de 100 países e isso tem gerado uma imensidão de movimentos e protestos contra esse tipo de brutalidade. Faço parte dos que não aceitam o assalto à vida humana - por qualquer que se já o motivo.

Mas, como estudioso da área social, tenho de informar os leitores sobre uma nova onda de pesquisas que justificam esse procedimento. Trata-se de um pequeno número de estudos mas que começam a ser citados por juízes e congressitas americanos que vêem na pena de morte um espantalho do crime.

Robert Blecker da New York Law School, John McAdams da Emory University (Atlanta) e outros pesquisadores, em especial os da University of Houston (Texas) e University of Colorado, conseguiram determinar que nos estados americanos onde foi intensificado o uso da pena de morte e nas áreas circunvizinhas, a criminalidade baixou de forma expressiva (Ver Robert Blecker, "Among killers", Washington Post, 03/12/2002; Richard Willing, "Death penalty gans unlikely defenders", USA Today, 07/01/2003).

Esses pesquisadores estudaram a situação do crime em 3 mil municípios, em torno dos quais foram impostas cerca de 6 mil penas de morte entre 1977-96, e concluíram que cada sentença desse tipo salvou a vida de 18 vítimas potenciais. Segundo sua teoria, os criminosos passaram a evitar as áreas nas quais podem ser condenados à morte.

A conclusão é surpreendente e explosiva, pois a maioria dos estudos, até aqui, mostraram pouco efeito da pena de morte como redutor da criminalidade.

As novas pesquisas vão gerar grandes polêmicas. Mas há que se reconhecer tratar-se de estudos muito detalhados e que procuraram captar os efeitos diretos e indiretos da pena máxima sobre os desvios de comportamento.

Pessoalmente, não compro a idéia com a facilidade com que seus autores a expõem. Há muitos outros fatores que devem ter interferido na redução do crime naquelas áreas. E, com mais razão, rejeito a conduta chinesa de matar suspeitos de doença só porque podem contaminar outras pessoas. Os seres humanos dispõem de inteligência e recursos suficientes para usar outros meios para deter os que representam perigo para a sociedade. Tais recursos deveriam ser usados no seu limite. Ademais, quando o regime é democrático e a justiça abre as portas para apelações e recursos, a pena de morte tem se revelado uma das mais caras punições do mundo. Não é o caso da China, é claro, onde o julgamento se dá em poucos dias e a bala do fuzilamento é paga pela família...