Publicado no Jornal da Tarde, 26/12/2001
Riqueza e felicidade
Na última 4a. feira (19/12/2001), o Presidente Fernando Henrique escolheu o tema da felicidade para a sua saudação natalina aos servidores do Palácio do Planalto. Argumentou que os mais poderosos não são os mais felizes. O que você acha? Poder traz felicidade? Dinheiro compra felicidade?
Centenas de escritores se entregaram à difícil tarefa de destrinchar o conceito de felicidade. Dentre os livros mais recentes, os trabalhos de Lane e Demo são obras preciosas (Robert E. Lane, The loss of happines in market democracies, New Haven: Yale University Press, 2000; Pedro Demo, Dialética da felicidade, 3 volumes, Editora Vozes, 2001).
A felicidade pode ser preliminarmente definida como o prazer de viver. Mas felicidade não é só sentimento. Ela inclui a reflexão que cada um faz da sua própria história. É isso que dá uma certa estabilidade ao conceito. Se este dependesse apenas de sentimento, uma pessoa seria feliz agora, e infeliz daqui há cinco minutos.
A felicidade emana de fatores individuais e sociais. Feliz é o indivíduo que julga o conjunto global de sua vida de modo favorável, incluindo a avaliação do passado, a vivência do presente e a visão do futuro. É com base nisso que as pessoas enfrentam os problemas do cotidiano. Como diz Demo, "O maior castigo do ser humano não é morrer, mas envelhecer. Para ser feliz, é preciso saber administrar o envelhecimento".
Nenhum ser humano pode ser feliz na solidão. A felicidade está intimamente ligada à qualidade das relações do indivíduo com seus familiares, amigos e comunidade. O bom relacionamento é o cerne da felicidade. Na França, 54% das pessoas se consideram solitárias. O que mais desejariam para serem felizes é um pouco mais de convivência social e capacidade para trocar confidências com outras pessoas.
Os governos não medem a felicidade como fazem com o PIB, saldo comercial, inflação, desemprego, etc. Apesar disso, muitos economistas pensam haver uma relação direta entre renda e felicidade. Mas a realidade não é assim. Os estudos de psicólogos e sociólogos mostram que a relação entre renda e felicidade é curvilinear e as relações sociais pesam muito, em especial, a familiar.
Em um país muito pobre, onde os recursos são escassos e os laços familiares e sociais são fortes, mais dinheiro dá uma expressiva contribuição à felicidade das pessoas. Mas em um país rico, onde a renda é alta e os laços familiares e sociais são fracos, o dinheiro perde o poder de fazer as pessoas felizes (Andrew J. Oswald, "Happiness and Economic Performance", The Economic Journal, Novembro de 1997). O gráfico 1 mostra de maneira impressionante que, nos Estados Unidos, a renda per capita subiu ao longo de 50 anos e a "felicidade média" desceu.
Embora essa relação tão negativa seja rara, em muitos países observa-se a relação curvilínea, inclusive no Brasil. A renda "compra" felicidade no estado de privação. Mas, a partir de certo ponto, a sua capacidade de compra diminui (Robert H. Frank, "The frame of reference as a public good", The Economic Journal, Novembro de 1997). Entre nós, para 32% dos pobres, cuja renda familiar é menos de R$ 180,00 por mês, "poder comprar o que a família precisa", os deixa mais felizes; entre os mais abastados, cuja renda familiar é mais de R$ 1.800,00 por mês, só 17% se sentem assim (Pesquisa IBOPE/CNI, 2001).
O bom relacionamento é decisivo nessa equação. A falta de apoio emocional, aconchego social e calor humano constitui um sério obstáculo para se chegar à felicidade. Isso tem uma relação positiva com a renda até certo ponto. Depois disso, a relação se inverte.
No Brasil, para 57% dos pobres (na classificação acima), o afeto familiar é uma fonte importantíssima de felicidade. Para os mais abastados, isso ocorre com apenas 37%. Neste final de 2001, 52% dos pobres esperam um Natal mais feliz do que em 2000. Para os mais abastados, isso é registrado em apenas 28% das pessoas.
O relacionamento humano é central para a felicidade. Ninguém é feliz sozinho. No entanto, a solidão vem aumentando de forma acelerada nos países e grupos de maior renda. Neles há uma oferta reduzida de amizade sincera. A roda de pessoas que se reúnem às 6as. feiras para comer e beber, por exemplo, preenche várias necessidades sociais - exceto a troca de afeto que é própria dos verdadeiros amigos. O pior é que a demanda por esse tipo de amizade também é pequena. As nações e as pessoas de alta renda temem serem invadidas na sua privacidade. Vivem em guarda. Evitam os "intrusos". E por isso continuam na solidão... o que acaba deteriorando o relacionamento familiar e social.
Entre os ricos, com freqüência, os problemas familiares estão no centro da sua infelicidade - e não podem ser atribuídos à falta de renda. Essas pessoas se preocupam o tempo todo com o comportamento da bolsa de valores e não da bolsa de afeto. Nesses casos, as causas da infelicidade estão muito mais ligadas à angústia mental do que aos bens materiais, geralmente, abundantes. Grande parte da depressão, ansiedade e tristeza é fruto de frustrações com parceiros e filhos. Famílias instáveis, filhos criados sem afeto, mortes e separações agridem a felicidade.
Para a maioria das pessoas de renda alta, é difícil identificar nelas o calor humano que emana da generosidade, solidariedade e sociabilidade. Essa falta deixa a vida sem graça. A manipulação diária das decisões de outras pessoas no mundo dos negócios destroi o afeto das relações interpessoais. Tudo vira "business". Cada vez que se recebe um presente, é preciso retribuir. Mas, os favores recíprocos não carregam emoção ao passo que a generosidade é só emoção.
Como somos um país de renda baixa (comparado com as nações do Primeiro Mundo), a aderência da renda à felicidade no Brasil ainda é grande. Ou seja, a renda "compra" felicidade para um grande número de pessoas. Mas, mesmo assim, depois de um certo ponto, a renda sobe e a felicidade cai. Para os mais pobres até mesmo a estabilidade de poder de compra dos últimos anos tem um forte impacto na sua felicidade. Quando se chega no patamar das pessoas de maior poder aquisitivo, cuja renda familiar mensal está entre R$ 900,00 e R$ 1.800,00, a felicidade começa a cair (Gráfico 2).
Os turistas se surpreendem com o sorriso largo e contagiante que encontram em grande parte dos pobres no Brasil. Para eles, os brasileiros são comunicativos, sociáveis, cantam e dançam, e se descontraem nas praias e nos passeios, transmitindo uma aura de felicidade. A impressão que levam é a de que as pessoas parecem mais felizes do que seus compatriotas de renda mais alta.
É assim mesmo. A solidariedade e a amizade sincera - raras entre os ricos - são condição essencial para sobreviver na pobreza. Enquanto o toque afetivo é abominável nos países de alta renda, no Brasil, é condição de encontro. O bom relacionamentos com amigos, parentes e vizinhos fazem parte da felicidade dos brasileiros de renda mais baixa. E como a felicidade individual depende muito da social, as pessoas mais simples tendem a ser mais resignadas e mais felizes. É comum encontrar entre elas a sábia afirmação de que "não se pode ser feliz querendo tudo" (Demo, op. cit., Vol. III).
Depois de um ano difícil (2001), 49% dos brasileiros esperam que 2002 será bom. Mas quem puxa essa média para cima, são os mais pobres. Entre eles, a esperança de um ano feliz atinge 53% das pessoas; entre os mais abastados, apenas 44%.
Em conclusão, o Presidente Fernando Henrique teve boa intuição na sua fala da última 4a. feira. Acréscimos indefinidos de renda - ou de poder - não acrescentam montantes infinitos de felicidade. Mas, é claro, não há a menor razão para se idealizar a pobreza da mesma forma que inexistem fundamentos para atribuir à riqueza a fonte de felicidade.
O crescimento econômico é fundamental para a melhoria da saúde, da educação, das proteções sociais e das facilidades materiais. Mas os componentes sociais são cada vez mais decisivos para fazer as pessoas felizes. Por isso, desejo aos meus leitores um Feliz 2002, na esperança de que cada um saiba usar bem a verdadeira mina da sua felicidade: o bom relacionamento na família e com os amigos.
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