Publicado no Jornal da Tarde, 15/05/2002.
A CLT do jogo do bicho
Um empregador irregular pode ter um empregado regular? É provável que você já tenha dito "não".
A sua resposta tem lógica. Mas nem tudo segue os cânones da lógica no mercado de trabalho do Brasil. A Vera Lúcia de Miranda trabalhou cinco anos na Paratodos Ltda. em Natal, Rio Grande do Norte. Foi despedida. Saiu com uma mão na frente e outra atrás. Não recebeu aviso-prévio, FGTS, indenização de férias, 13º salário - nada, absolutamente nada.
Inconformada, entrou com uma ação na Justiça do Trabalho. As suas reclamações foram graves. A mais séria foi o fato da empresa não ter registrado sua carteira de trabalho durante cinco anos! Em um caso como esse, as multas são gigantescas.
Na primeira instância, a Vera ganhou. Ficou animada pois receberia cerca de R$ 8.400,00 (valores de 1999) atualizados para 2001. Mas a empresa recorreu junto ao Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Norte. O TRT confirmou a sentença da primeira instância. Mais uma vitória para a Vera. A empresa recorreu, então, ao Tribunal Superior do Trabalho em Brasília - TST - onde o Ministro Luciano de Castilho estudou bem o processo, como é de seu hábito, e concluiu: "O contrato pode ter sido nulo por se tratar de atividade ilegal, mas as conseqüências do contrato são muito concretas. E condenou a empresa a pagar o que deve". Seu voto foi apoiado pelos demais ministros da Segunda Turma do TST. É bem provável que será essa a decisão final do TST.
A Paratodos Ltda. é um empresa que tem o monopólio da exploração do jogo do bicho em Natal, que é ilegal no Brasil. Assim diz o artigo 58 da Lei das Contravenções Penais (Lei 3.688/1941). Mas a Paratodos Ltda. é uma empresa registrada, tem CNPJ, opera cerca de 1.500 bancas de jogo do bicho em Natal e possui 120 empregados que recolhem contribuição à Previdência Social como autônomos.
O seu proprietário alega que gostaria muito de assinar a carteira de trabalho de todos os seus funcionários mas não tem como. Eles teriam de ser registrados como cambistas, como foi a Vera Lúcia de Miranda entre 1995 e 1999. O empregador estaria sujeito a um processo que poderia redundar em uma pena de quatro a 12 meses de prisão e ainda uma bela multa.
Os juízes em todos os níveis entenderam que o proprietário "esconde-se atrás do biombo da ilegalidade. Com isso pretende utilizar o trabalho de uma pessoa de forma permanente e assalariada sem que se estabeleça um vínculo empregatício. Isso é ilegal".
O empregador acha que se for condenado, obterá um alvará de alforria para legalizar o jogo do bicho no Rio Grande do Norte e, quiçá, em todo o Brasil. Para ele, a empresa tem competência administrativa e viabilidade econômica para registrar todos os seus 120 colaboradores.
É interessante que uma empresa ilegal parece estar pronta para contratar trabalho de forma legal. Há milhares de casos em que isso não pode ser feito devido ao excesso de despesas da contratação com vínculo empregatício. Por exemplo, quando uma empresa começa uma grande construção em determinado canteiro de obras (prédio público, conjunto residencial ou obra de infra-estrutura) é comum para mulheres da redondeza oferecerem refeições para os trabalhadores. Isso envolve o trabalho da fornecedora, de ajudantes de cozinha e vários entregadores de marmitas no canteiro de obras. O trabalho é importante, mas é informal. Não há registro de nada. O empregador é informal e os empregados são informais.
O que fazer? Registrar a firma como Marmitas Ltda. e contratar os empregados com 103,46% de despesas? É pouco provável que a pobre cozinheira tenha a lucratividade do jogo do bicho. Se a fiscalização decidir "estourar" o seu negócio, não haverá chance para a dona das marmitas. A condenação será na primeira instância.
Não estou advogando a prática da ilegalidade, ainda mais no setor de alimentação. Estou ressaltando, porém, que a Justiça do Trabalho está encontrando uma solução legal para uma atividade condenável e não tem como fazer o mesmo em relação a uma atividade sadia.
Não seria melhor pensar em uma simplificação das despesas de contratação de trabalhadores para permitir que as centenas de milhares de donas Marias das marmitas viessem a contar com a colaboração de trabalhadores legais e protegidos?
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