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Publicado no Jornal da Tarde, 28/04/2004.

Abaixo o trombone!

Quanto mais estudo as questões do trabalho, menos entendo a mente dos que legislam sobre a matéria. Vejam o que descrevo a seguir.

Em fevereiro de 2003, a seção de assuntos trabalhistas da União Européia aprovou uma resolução que proíbe o uso de sons com mais de 85 decibéis nas orquestras sinfônicas da Europa. O objetivo é proteger a audição dos músicos.

Ocorre que os sons das orquestras sinfônicas chegam a 96 e até 98 decibéis. Os metais (trompete, trombone, tuba, etc.) e os instrumentos de percussão (tímpanos, pratos, sinos, etc.) chegam a 130 e até 140 decibéis.

A intensidade dos sons foi menor no passado remoto. Bach contentou-se em escrever músicas que continham apenas "p" (piano) e "f" (forte). Mas, os autores românticos passaram a usar "ff", "fff" e até "ffff", como nas óperas italianas.

Em conseqüência dos aperfeiçoamentos técnicos, os instrumentos modernos tornaram-se muito mais poderosos. A trajetória da música romântica e moderna é na direção de sons encorpados e fortes. Assim ocorre com as óperas de Wagner, as grandes sinfonias de Mahler, a revolucionária Sagração da Primavera de Stravinsky e as gigantescas orquestrações de Ravel, Richard Strauss e sucessores. E êxtase do público só chega no momento em que os músicos entram em "transe", obedecendo rigorosamente a marcação dos compositores e a liderança do maestro.

Estamos diante de um conflito entre a lei e arte. O público, o maestro e os músicos buscam o fino da música. O legislador quer detê-los. O que fazer?

Algumas soluções chegaram a ser tentadas. Uma delas foi o uso de protetores auditivos para os músicos. O tiro saiu pela culatra. Os sons tornaram-se mais estridentes. Você mesmo, caro leitor, já deve ter notado que as pessoas falam mais alto e até gritam quando colocam fones de ouvido. Não deu certo. A "solução" deturpou a música.

Outra tentativa foi a de colocar chapas de vidro para separar os metais das cordas, a percussão das madeiras e assim por diante. Os músicos ficaram enjaulados em cubículos envidraçados. Também não funcionou. Os sons fugiram do foco e passaram a trafegar nas mais variadas direções, quebrando a mistura engenhosa de timbres criada pelo autor e o equilíbrio buscado pelos maestros que, aliás, enlouqueceram!

Até o momento nada resolveu o alegado problema. Tanto que o órgão dos Estados Unidos que cuida da proteção dos trabalhadores contra acidentes e doenças profissionais (OSHA-Occupational Safety and Health Administration) resolveu fazer vistas grossas (James R. Oestreich, "The Shushing of the Symphony", New York Times, 11-01-2004).

Seguindo a tradição da Europa em matéria trabalhista, A União Européia aprovou a dura resolução que, na prática, só conseguiu instigar conflitos entre executantes, regentes e público: os sindicatos dos músicos querem por que querem que as orquestras fiquem dentro dos 85 decibéis.

Comissões e grupos de trabalho se sucedem em debates estéreis. As discussões são infindáveis. Até agora, nenhuma solução. Alguns esboçaram a "brilhante" idéia de limitar o repertório das orquestras a músicas que ficam dentro dos permitidos 85 decibéis. O mero anúncio da medida provocou veementes protestos do público que ameaçou desaparecer dos teatros. Outros quiseram manter o máximo dos 85 decibéis para todos os fortíssimos da peça. Os maestros prepararam suas cartas de demissão.

Aí está um problema que ilustra bem os limites da regulamentação no campo do trabalho. Os legisladores, na solidão de seus gabinetes, decidiram o que é impossível de ser implantado na prática. Mais do que isso, eles deixaram de fazer um levantamento acurado sobre a extensão do problema.

Será que a perda de audição é uma síndrome generalizada entre os músicos? Como explicar que maestros idosos da atualidade como Pierre Boulez, Cláudio Abado, Kurt Masur e outros mantêm seus ouvidos afinadíssimos e capazes de distinguir, com a mais absoluta exatidão, frases em piano e pianíssimo de frases em forte e fortíssimo? Como querem os legisladores passar por cima dos regentes que são os intérpretes mais próximos daquilo que foi o sonho dos compositores? Na história dos compositores e executantes há muitos portadores de deficiência (física, visual e auditiva), mas o único caso de surdez severa foi o de Beethoven, mas a sua doença nada teve a ver com a música...

É por isso que comecei e termino este artigo dizendo que quanto mais estudo as questões do trabalho menos compreendo a mente dos legisladores...