Publicado em O Jornal da Tarde,22/11/1995
Roubo de olhos
Certa vez, um cego pediu ao amigo para lhe explicar como era o branco. O leitor já pensou na dificuldade dessa tarefa?
- Branco é uma cor como, ... por exemplo, ... a neve. A neve é branca, disse o amigo.
- Entendi. Branco é uma cor fria e úmida, re-trucou o cego.
- Não. O branco não precisa ser frio e úmido. Esqueça o exemplo da neve. O papel! Esse é um bom exemplo: O papel é branco.
- Ah! Já sei. O branco é uma cor que amassa.
- Não! O branco não tem nada a ver com amassar. Vou lhe dar um outro exemplo. Pense num coelhinho albino. Pensou? Pois bem, ele é inteiramente branco.
- Agora sim, peguei a idéia. O branco é peludo e macio.
- O branco não precisa ser peludo; e nem macio. A porcelana, por exemplo, é branca e não tem nada de peluda ou macia.
- Compreendi! O branco é uma cor bem lisa e escorregadia, disse o cego.
A conversa foi indo, indo, indo sem chegar a lugar algum. Quanto maior era o número de exemplos, mais o cego se distanciava da realidade.
Eu costumo citar esse diálogo nas minhas aulas de metodologia de pesquisa para mostrar aos alunos que a comunicação só pode ocorrer quando existe um mínimo de experiência comum entre as pessoas. Quem só depende do tato e nunca viu cor, não pode saber o que é branco. E quem nunca foi cego e pouco usa as mãos para decifrar o mundo exterior não pode saber o que é viver na ausência de cor.
Tudo isso me veio à mente quando, na semana passada, vi na televisão o triste caso do Sr. Olívio Correa. Um homem simples. Agricultor. Daqueles que trabalham de sol a sol. Uma cara boa.
Não sei se ele é tudo isso. O noticiário foi exíguo sobre o seu perfil. Mas, fiquei com a imagem de um homem de bem. Dizem que ele bebe. Mas isso não justifica o acontecido: roubaram-lhe os dois olhos! Uma coisa inacreditável.
Já ouvi muitas estórias sobre o tráfico de órgãos. Nunca acreditei muito nelas. Fala-se também da venda de rins. Isso parece mais plausível. Mas, roubo de olhos, nunca. Como explicar esse tipo de roubo lá fora?
Foi uma coisa brutal. Hoje, o Olívio está cego. Mas ele é um cego especial. é daqueles que conhece todas as cores. Se perguntarmos o que é o branco, ele responderá com precisão: "é a cor mais clara de todas as cores; é o contrário do preto; é o inverso da minha vida atual".
Por que lhe roubaram os olhos? O Olívio não sabe. Eu também não. Ninguém sabe. Até o momento foi impossível encontrar uma versão consistente para explicar tamanha truculência. Vingança? Revanche? Retaliação?
Não se sabe. Mas, o fato simboliza a incontida escalada de atos que, além de violentos, se destacam por sua extrema crueldade. Próprios de gente calculadamente maldosa.
Sérgio Buarque de Holanda dizia que a grande contribuição do Brasil à civilização ocidental era a cordialidade. "O brasileiro é cordial", escreveu ele no Raízes do Brasil. Bons tempos! Que diferença dos dias atuais quando, neste mesmo Brasil, se generaliza a agressividade e explodem os crimes premeditados. Cheios de dolo e guiados pelo ódio.
Os comportamentos tendem a ser reflexos das condições sociais. Estamos numa fase de mudanças rápidas e desequilíbrios graves. Nessas fases, é comum aos seres humanos se desorientarem. As pessoas ficam sem normas de conduta, perdendo a noção do que seja certo ou errado. Surge, então, o estado de anomia.
Uma sociedade anômica é como uma multidão desgovernada. Ninguém sabe o que fazer. Veja o que ocorre no Brasil de hoje. Pouca gente se arrisca a sair nas ruas. A maioria se esconde. Os ricos, para não serem seqüestrados; os da classe média para não serem confundidos com os seqüestráveis; e os pobres para não serem tomados como seqüestradores. A desorientação é geral.
Para combater a anomia, inexiste solução milagrosa. Educar é fundamental e leva tempo. Além disso, porém, há que se aperfeiçoar muito os controles sociais. Só teremos dias mais tranqüilos se aperfeiçoarmos substancialmente os sistemas educacional, policial e judicial. Nos três, o Brasil tem insistido em investir pouco, ignorando a sua importância. O resultado aí está. Já se começou a roubar olhos neste país. Qual será a próxima etapa?
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