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Publicado no Jornal da Tarde, 17/05/00

Estórias de índios

José Pastore

Para mim é um grande privilégio ter como vizinho e amigo um dos seres humanos mais generosos e ilustres deste País – Orlando Villas Bôas. Ele é sempre um papo gostoso, cheio de sabedoria e belo senso de humor.

Ganhei dele, com dedicatória e tudo, o seu último livro, A Arte dos Pajés (Editora Globo, 2000). Uma leitura deliciosa. O Orlando escreve maravilhosamente bem. Frases curtas; estilo sintético; e palavras muito bem escolhidas.

Nestes dias em que tanto se fala dos índios, não poderia ter sido um melhor presente. Estudei bastante antropologia na minha juventude. Mas, esqueci muita coisa. Estava precisando de um refresco de memória.

O livro narra estórias fascinantes do sobrenatural do Alto Xingu – estórias que são desprezadas pelos brancos, mas que foram fundamentais para o cuidado da saúde e para a construção da confiança dos povos indígenas.

Orlando não diz que acredita em mamaés – os espíritos que rondam as aldeias; mas tampouco diz que não acredita. Do jeito que escreve, penso que, no mínimo, ele evitou desafiá-los durante sua longa estada com os índios...

No caso de doença, explica ele, a principal tarefa do pajé é saber qual foi o mamaé que causou o problema para, em seguida, acionar o arsenal de medidas para curar o mal. Como pesquisador da área do trabalho, quis saber como se remunera esse pajé.

Conta Orlando que, Tucumã, um pajé de enorme reputação, foi chamado para acudir um menino que explodia de dor de cabeça. Identificado o mamaé, e feito o diagnóstico, ele começou a mastigar uma frutinha que todo pajé usa para curar, pôs na boca a sua cigarrilha "curativa", deu enormes baforadas em cima do menino, e disse à mãe: ele está curado, o que foi confirmado pelo garoto: Mãe... passou!

Poucas horas depois, a mulher foi à casa de Tucumã para efetuar o pagamento – um bonito colar de caramujo. Horas passadas, o Pajé chamou a mãe, disse que tivera um sonho e, nele, um mamaé dos mais temidos (Anhangu), disse que não havia gostado do colar, pedindo-lhe que devolvesse aquele e pedisse outro. Incontinenti, a mulher recolheu o colar e lhe trouxe outro, muito mais bonito que, segundo Tucumã, na mesma noite, Anhangu levou para si... o que me fez pensar (o Orlando que não me ouça) que, também na medicina indígena, parece haver tabela de preços... O próprio Orlando diz ser rendosa a atividade dos pajés. Só que eles jogam o custo nas contas dos mamaés.

Outro traço que sempre persigo é o da divisão do trabalho. Entre os índios, o milho, a batata-doce, o inhame e o amendoim são plantados pelos homens. Os cuidados ficam com as mulheres; a colheita e o transporte, com as meninas.

Fiquei pensando como reagiriam os brancos contemporâneos diante dessas regras. O sobrepreço cobrado pelo pajé, denotaria, no mínimo, uma reclamação no PROCON. O trabalho da menina, instigaria o Jornal Nacional a mostrar as atrocidades do trabalho infantil.

Só que, como conta Orlando, a criança, na cultura indígena, é uma entidade intocável: "Nos 40 anos que vivi com os índios, nunca vi a uma mãe puxar a orelha da filha ou um pai dar um cascudo na cabeça do filho". Para corrigir uma criança, em vez de adverti-la publicamente ou usar energia, o pai ou a mãe chegam até ela, com tempo, paciência, carinho e jeito, explicando o que é correto e, no máximo, tirando-a de onde está, colocando-a em outro lugar agradável – sem a menor conotação de castigo.

Entre nós, por alegada falta de tempo dos pais - dependendo da família - as crianças são punidas a céu aberto, castigadas e ostracizadas ou, nas classes mais altas, superprotegidas - uma das piores formas de autoritarismo.

Dessas reflexões desordenadas sobre um livro muito bem ordenado, relembrei meus tempos de estudante quando, confesso, dava mais valor às culturas diferentes. A leitura do Villas Bôas me fez muito bem.