Artigos 

Publicado em A Folha de São Paulo, 05/05/1991

A cultura do herói

A hiperinflação foi afastada em março de 1990 mas o vírus não morreu. Ele foi apenas aprisionado em uma urna cuja chave está agora nas mãos do Supremo Tribunal Federal.

Enquanto sobreviver, mesmo latente, esse vírus impede o país de crescer. Os produtores nacionais não investem. Os capitais estrangeiros não chegam. O Brasil fica como uma estrela cadente.

A confiança é a condição essencial para a retomada do desenvolvimento. Isso vale para qualquer nação, especialmente para as marcadas pelo personalismo, como as da América Latina - Brasil incluído. O traço básico da nossa cultura é valorizar mais as pessoas do que as instituições.

Isso tem profundas raízes históricas e determina muito do nosso modo de pensar, sentir e agir.

Para boa parte dos brasileiros as instituições são ainda coisas abstratas. O que conta mesmo são as pessoas. As personalidades fortes, os líderes carismáticos e os heróis fascinam mais do que as regras porque, aos olhos da maioria, são eles que podem resolver seus problemas.

Nossa cultura é toda amarrada à ação interpessoa. Na tradição anglo-saxônica, por exemplo, um pedido sério é logo colocado em carta, com bons argumentos. Entre nós, seguimos outro caminho: "Eu falo com ele, pessoalmente. Ele me deve um grande favor". É comum ouvir-se: "O erro dele foi escrever; podia falar, mas escrever jamais; não tem experiência". Tradução: ele não domina bem a cultura.

O Brasil não é para principiantes. Aqui, um bom relacionamento com as pessoas certas é um capital valioso. Estar perto de quem tem poder, pode ser mais útil do que estar com a lei.

Em uma democracia amadurecida, o atrelamento às regras e às organizações é o que conta. As organizações de base digerem muitos problemas e estabelecem regras de conduta. Assim ocorre, por exemplo, com a associação de pais e mestres nos Estados Unidos, com os conselhos comunitários na França, com as organizações profissioonais na Inglaterra e com os sindicatos de empresas no Japão.

Entre nós, na falta dessas organizações do cultivo de regras, tudo passa para o governante. Ele é visto como o responsável pelo progresso. Entre um bom herói e uma boa instituição, o brasileiro escolhe o primeiro. Instituição é coisa secundária. Nós confiamos mesmo é nas pessoas que se mostram competentes para fazer o que deve ser feito - seja que regra use ou desrespeite.

O brasileiro espera muito da pessoa do presidente. É ele quem tem de gerar empregos, baixar a inflação, dar instrução, prover habitação, melhoraar o transporte etc. Este é o Brasil. Fomos formados assim. E vamos continuar assim por muito tempo. A valorização das regras e das instituições só ocorrerá depois de uma gigantesca e demorada revolução educacional. Gostemos ou não, teremos de conviver por muitos anos com a cultura do herói.

Em função de sua crença, quando chamado por um herói, o brasileiro é capaz de abrir mão de tudo, até mesmo de seus direitos individuais. O resto do mundo não entende até hoje, por exemplo, porque os depositantes aceitaram com tanta resignação a quebra das regras bancárias e a retirada de recursos de suas contas correntes em 1990. Isso só pode ser adequadamente compreendido no contexto da cultura do herói.

Definitivamente, o Brasil não é para principiantes. Mas, o que faz esse povo quando chega à conclusão de que o herói não é herói? Num primeiro momento, recorre às regras que ele mesmo, com seu silêncio, permitiu violar. Mas logo em seguida, sai em busca de outro herói. Esse é o atavismo da cultura do herói. Não há nada de pejorativo nisso. Não somos piores ou melhores do que os outros povos. Somos apenas diferentes: enquanto uns valorizam regras, nós, historicamente, aprendemos a cultivar heróis.

Nossa salvação depende, pois, de ter o herói certo. Esse é o estadista que almeja ver seu nome lembrado depois de 20-30 anos como um governante que salvou seu povo da dor e da escuridão. Para chegar nisso, seus exemplos são melhores do que suas palavras. Sacrificar os que aproveitam de sua intimidade é essencial para conquistar a confiança duradoura.

Afinal, nada pode ser feito sem a confiança do povo. Isso vem da sabedoria milenar. Certa feita, o príncipe peguntou a Confúcio: "Como se faz um bom governo?". Confúcio respondeu: "Um bom governo depende de três coisas: suficiente armamento, muito alimento e bastante confiança". O príncipe então indagou: "E se o governante não dispõe dos três?" "Que abra mão do armamento", ensinou Confúcio. "E se não tem os outros dois?" "Que abra mão do alimento, pois ele jamais conseguirá governar sem a confiança do seu povo."