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Publicado em A Folha de São Paulo, 20/05/1987

A ética da mentira

As irregularidades apontadas pela Folha com respeito à concorrência pública para a construção da Ferrovia Norte-Sul ensejaram tantos pronunciamentos desencontrados que nos levam a examinar a velha questão: Em que condições é legítimo mentir?

A resposta a essa pergunta depende do estabelecimento dos critérios de legitimidade e, em última análise, de um código do certo e do errado, ou seja, de uma "ética da mentira". Esse é exatamente o tema do livro de Sisela Beck: "Lying: Moral Choice in Public and Private Life".

A mentira constitui fenômeno amplamente generalizado na sociedade moderna, mas pouco estudado em suas causas, tipos e conseqüências. Quando se justifica mentir? Que tipo de mentira é válida para o homem público? Quais as consequências da mentira para quem mente e para quem é enganado?

A interpretação da mentira depende portanto do "código de ética" seguido pelo mentiroso. Para o utilitarista, por exemplo, a mentira se justifica quando, através dela, se produz maior felicidade. Esse é o caso do comentário que se faz ao moribundo ("como você está bem...") ou do consolo do dentista ("não vai doer nada...") ou da formalidade dos adversários quando se encontram em público ("que prazer em vê-lo...") ou mesmo do final da carta desaforada ("com a minha mais alta estima e elevada consideração...").

No código do utilitarista, tais mentiras geram mais satisfação do que as verdades. Mas seria essa a maneira mais adequada para se analisar as "mentiras para o bem público" praticada pelos governantes?

A mentira dos governantes é também fenômeno generalizado. As sociedade, porém, variam enormemente quanto ao tipo e volume de mentira tolerados. A mentira dos governantes é por eles considerada sempre como muito trivial, embora raramente o seja. Analisada dentro de um outro "código de ética", o determinista, a mentira é avaliada de outra maneira. Basicamente ela envolve duas pessoas: o mentiroso e o enganado.

Nenhum dos dois deseja ser enganado.

Nesse ponto eles são iguais. Por isso, quando um deles decide mentir, na reaalidade, ele está tentando reservar para si o direito de exigir que o outro seja honesto. Como isso é impossível, depois das primeiras mentiras, as outras ficam muito mais fáceis, pois as barreiras pscológicas vão sendo relaxadas e as mentiras vão se afigurando como cada vez mais necessárias e menos repreensíveis. Isso acontece muito com as mentiras dos governantes. Daí em diante, as mentiras vão escalando num crescendo incontrolável no pressuposto de que todas elas são utilitárias e triviais, quando na realidade raras delas efetivamente o são. Confunde-se então o direito de omitir uma informação perigosa com o direito de mentir.

A tolerância das sociedades à mentira dos governantes varia. Observa-se que as sociedades mais avançadas preliminarmente debatem o assunto e depois estabelecem explicitamente, os limites e as condições para omissões, mas nunca para a mentira. Esse é o caso por exemplo, do anúncio de uma desvalorização da moeda, que causa grandes prejuízos (ou ganhos descabidos). Até esse ponto, admite-se omitir. Para não precisar mentir, o governante tenta evitar ao máximo ser indagado à respeito, pois a mentira nesse caso - apesar de utilitária - deterioraria a sua credibilidade. As sociedades modernas definem, rigorosamente os limites para os depoimentos falsos por reconhecerem que tal prática é a maior destruidora da credibilidade do governante e do próprio tecido social. Com base nessa preocupação tais nações tendem a condenar fortemente o uso da mentira e sempre preferir a alteernativa honesta na área pública. As próprias leis e regulamentos são elaborados de modo a desestimular e sancionar o uso da mentira desnecessária.

Neste momento, em que no Brasil se renova a Carta Constitucional, é mais do que oportuno examinar-se as novas leis à luz de seu potencial gerador de mentira, especialmente no campo govenamental.

O Brasil terá muito a ganhar se, na nova Carta, figurarem mecanismos controaldores da mentira pública. Um deles deveria sujeitar o governo a um exame permanente de sua própria conduta. Outro deveria permitir aos cidadãos a rejeição imediata da mentira pública toda vez em que uma alternativa honesta fosse disponível. Finalmente, outro deveria dar ao governo e aos cidadãos os instrumentos de pronta ação para punir aqueles que no seu comportamento vão além da ética da mentira. Dessa forma estaríamos estabelecendo as bases da simetria de obrigações e respeito entre governantes e governados - fundamento essencial de toda democracia.

Se já dispuséssemos de tais mecanismos e acima de tudo de uma tradição comportamental efetiva nesse campo é certo que as justificativas deslavadas do escândalo da ferrovia Norte-Sul não teriam andado o tanto que andaram. Seja qual for o critério, do mentiroso, o fato é que as mentiras disseminadas foram muito além de qualquer faixa de permissividade.