Publicado em O Jornal da Tarde,22/09/1997
Assédio sexual é crime?
José Pastoree Luiz Carlos Amorim Robortella
Diz o ditado que sempre é melhor prevenir do que remediar. Pois bem, no caso do assédio sexual circulam inúmeros projetos de lei no Congresso Nacional que visam apenas remediar. E mesmo assim, apresentam remédios de efeitos incertos.
Todos eles criminalizam a questão. Esse é o desejo também do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Mulher.
A criminalização transforma o assédio sexual em questão policial e judiciária. Haverá queixa, boletim de ocorrência na delegacia e audiência no tribunal, expondo ao publico um problema que as partes gostariam de ver tratado com reserva.
Será esse o melhor caminho para reduzir o assédio sexual no trabalho? A Senadora Benedita da Silva, por exemplo, tem um projeto estabelecendo que, no crime de assédio sexual, a ação penal será pública. O Senador José Bianco ofereceu um substitutivo, mantendo esse aspecto e insistindo na criminalização.
Em todos os projetos de lei que ora tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal há deficiências conceituais graves. Eles tendem a confundir assédio sexual com sedução, "cantada", violência, estupro etc. Trata-se de figuras muito diferentes. Cada uma tem o seu próprio remédio e método de prevenção.
Um "caso" amoroso que se instale entre o chefe e sua secretária, com consentimento recíproco, constitui assédio sexual? E as brincadeiras de sedução bilateral, que ocorrem entre jovens no ambiente de trabalho, são casos de assédio? E o avanço físico, desrespeitoso e não solicitado? é assédio ou molestamento? Ou violência?
Para prevenir ou corrigir uma patologia, é preciso fazer um bom diagnóstico. Cada doença tem sua etiologia e seus desdobramentos. Prescrever o remédio errado pode ser mais grave do que não prescrever nenhum.
O assédio sexual no trabalho tem um ingrediente peculiar, que o distingue de outras formas de abuso: a chantagem. O assédio ocorre quando uma pessoa tenta usar o seu poder para obter favores sexuais da outra. Trata-se, portanto, de uma ação unilateral e assimétrica. O assediador deseja obter, por chantagem, o que o assediado não quer proporcionar.
O elemento da chantagem é essencial. O simples "flirt", os jogos recíprocos e a cantada, sem intenção de chantagiar, não são assédio sexual. Quanto à violência e o estupro, são crimes sexuais tipificados no Código Penal, muito mais graves do que o assédio.
O uso do poder no assédio sexual assume as mais variadas formas. Freqüentemente, é o superior hierárquico que promete promoções ou ameaça despedir, em troca de favores sexuais, embora haja casos bem mais raros, em que o subordinado procura chantagear o superior, fazendo uso de informações confidenciais.
As pesquisas revelam que em 80% dos casos, o assédio é praticado pelos superiores hierárquicos. Em 7%, as pessoas envolvidas são do mesmo nível. Os demais casos são praticados por pessoas de nível inferior ou fora da hierarquia da empresa como, por exemplo, vendedor e cliente, médico e paciente etc.
De acordo com os dados disponíveis, em 90% dos casos, as mulheres são assediadas por homens. Em 9%, o assédio ocorre entre pessoas de mesmo sexo. Em apenas 1% os homens são assediados pelas mulheres (José Pastore e Luiz Carlos Amorim Robortella, Assédio Sexual no Trabalho, Editora Makron Books, no prelo).
O assédio sexual, por ser um ato de chantagem, traz profundos prejuízos não só para a pessoa assediada como também para o ambiente de trabalho, a produtividade, e a imagem da empresa. é execrável a intenção de traficar e valer-se do posto funcional como instrumento de extorsão de relações indesejadas. O assédio sexual é uma das piores facetas do poder do empregador e seus representantes.
Mas há que se tomar cuidado com a denunciação caluniosa, que pode constituir dano moral ainda maior do que o assédio sexual.
Nos Estados Unidos começa a emergir uma verdadeira indústria de ações judiciais, não sendo desprezíveis os casos de conluio entre assediado e assediador para obter indenização da empresa. é importante, por isso, haver meios para apurar o fato que sejam acessíveis a todos os empregados. Mas, isso não é fácil.
No campo civil, há meios para reparar o assédio mas a matéria é ainda pouco estudada. A Constituição Federal dispõe que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação"(art. 5o., X). Na Justiça do Trabalho há muitos pedidos de indenização por dano moral, inclusive por assédio.
A reparação material do assédio continua um assunto complexo. Será que o assediador tem recursos para indenizar a vítima? Por que não cobrar da empresa? Afinal, o Código Civil atribui ao empregador a responsabilidade pelos danos causados por seus empregados, no exercício do trabalho.
Mas como responsabilizar a empresa pelo comportamento íntimo dos seus milhares de empregados com base, apenas, numa lei de assédio? Como apurar o assédio se ele é normalmente praticado às escondidas, em situações isoladas, depois do horário normal de trabalho, na intimidade dos escritórios e sem testemunhas? é grande o risco do caso se transformar em confronto insolúvel entre a afirmação da vítima e a negação do acusado.
A eventual aprovação de uma lei que confunda o assédio sexual com a mera proposta amorosa, deixando para o subjetivismo da polícia ou dos juízes a constatação e julgamento da conduta delituosa, poderá gerar milhares de processos criminais, causando enorme transtorno à justiça do País.
O que interessa é evitar o problema. Apesar de ocorrer com certa frequência, o assédio sexual raramente é denunciado pela pessoa assediada. Há sempre um sentimento de vergonha e mêdo que impede os assediados de denunciarem os assediadores. Mesmo nos Estados Unidos, as reclamações são de apenas 8% das ocorrências de assédio. No Brasil, estima-se em bem menos de 1% a proporção das pessoas que levam o caso aos superiores da empresa ou à delegacia de polícia e à justiça.
Mas esse não é um bom indicador do problema. O assédio sexual já perturba muitas pessoas e atrapalha o trabalho em várias empresas. Entre nós, uma pesquisa realizada com 7 mil secretárias pelo Sindicato das Secretárias do Estado de São Paulo revelou que 24% das pessoas pesquisadas foram vítimas de assédio sexual na situação de trabalho. Essa proporção é bastante alta e mostra a necessidade de se combater o problema.
Mas, qual a melhor maneira de se evitar o assédio? A experiência constata a superioridade dos mecanismos que reduzam o poder de chantagem dos assediadores. Como fazer isso?
Para tanto, convém começar a pensar seriamente nos "procedimentos preventivos" no local de trabalho, a ser observados por todos os empregados, inclusive os chefes, gerentes, diretores - e também pelo presidente da empresa.
Tais procedimentos são simples. Eles estabelecem regras hierarquizadas. Segundo a primeira regra, a pessoa que se sentir assediada dirige-se ao assediador dizendo apenas que não gostou de sua conduta, a qual não deve se repetir. Na hipótese do assédio prosseguir, ela passará a usar a segunda regra: escreve uma carta pessoal ao assediador dizendo que, se o seu comportamento persistir, será usada a terceira regra. Nesta, prevê-se o encaminhamento de cópia da carta ao superior hierárquico. E assim por diante.
O modus faciendi evidentemente varia de caso para caso. Mas as pesquisas mostram que a estrutura hierarquizada dos procedimentos reclamatórios tem um forte poder inibidor do assédio sexual no trabalho. Em geral, o assediador pára no primeiro estágio.
As regras têm de ser conhecidas e aceitas por todos. A empresa, os sindicatos e as comissões internas podem trabalhar juntos na consecientização e esclarecimento dos procedimentos reclamatórios.
Portanto, não há necessidade de transformar o assédio sexual em crime. E muito menos confundí-lo com outros tipos de condutas imorais ou criminosas. Mais importante é estimular a criação de relações de trabalho que permitam a prevenção e a reparação dessa detestável chantagem através de meios discretos, reservados, eficientes e ao alcance de todos.
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