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Publicado em O Jornal da Tarde, 10/09/1997

Trabalho e família

Você dedica o tempo que gostaria à sua vida familiar? é bem provável que não. A queixa é geral, especialmente, das mulheres.

Em uma pesquisa de caráter histórico sobre a utilização do tempo em família (John Gills, Making Time for Family, 1996), o autor começa analisando dados atuais que mostram, realmente, uma vontade generalizada das pessoas aumentarem o tempo que passam com seus familiares. A partir disso, ele regride no tempo para examinar o passado.

Atualmente, o problema da falta de tempo é percebido pelas pessoas como grave ameaça à família - o que não teria existido nos tempos dos nossos avós e bisavós.

Essa era também a minha expressão pois, afinal, o homem e a mulher nos dias atuais trabalham fora de casa de modo muito mais intenso do que antigamente. Sempre achei que a família era a grande perdedora nesse processo por ceder uma grande parte do seu tempo ao trabalho.

A pesquisa histórica, porém, não diz isso. No início do século 19, não havia nem tempo nem local para interação intensa. A semana era de sete dias. O domingo era dedicado a atividades muito mais comunitárias do que familiares. A invasão da comunidade na família era a regra.

As cerimônias familiares (nascimento, batizado, casamento, etc.) também eram "invasivas". Nessas ocasiões, os vizinhos, amigos e outros parentes tratavam a família como um ente quase-público. O único evento mais reservado era o da morte. Mesmo assim, a parentela velava o corpo por 24 horas e logo se dispersa.

Até meados do século passado, a sala de jantar como conhecemos hoje não havia sido inventada. A refeição principal era a do almoço. Marido e mulher, quando estavam em casa, envolviam-se intensamente com o trato e a administração da propriedade. pais e filhos interagiam com cerimônia e muita distância social, ora por força do respeito, ora por autoritarismo - e na maior parte das vezes pelos dois motivos.

Fora de casa, homens e mulheres tinham espaços e tempos separados. Os homens gozavam de uma liberdade quase ilimitada para tocar suas carreiras e fazer seu lazer. As mulheres mantinham-se nos limites estreitos de uma liberdade constrangida e envolvidas com as tarefas do lar.

é interessante a nossa tendência em idolatrar um passado que nunca vivemos, achando-o melhor do que o presente. Como explicar isso?

O que mudou foi o conceito de família e a ritualização do tempo. A unidade nuclear dos tempos modernos (marido, mulher e filhos) é menos comunitária e mais individualizada do que a família extensa dos velhos tempos.

Calculando na ponta do lápis, a quantidade de tempo disponível para a família atual é maior do que no passado. A concentração do trabalho em apenas cinco dias da semana (semana inglesa) é uma invenção recente. E as jornadas de trabalho estão cada vez mais curtas.

Não se trata, portanto, de falta de horas mas sim de como essas horas são usadas. é um problema distributivo. Hoje em dia, uma grande parte do tempo familiar é gasta em atividades que nos isolam da família como é o caso da televisão, internet, cinema. teatro, natação, malhação, etc.

Em suma, o trabalho parece ter pouco a ver com o problema em questão. Isso me leva a levantar a hipótese de que a reclamação de falta de tempo familiar seja mais uma retórica do que realidade. O que você acha disso? Será que o flagrei em alguma contradição?