Artigos 

Publicado em O Jornal da Tarde,30/07/1997

A lógica da esmola

Você conhece gente que se faz de morta quando um pobre se aproxima para pedir uma esmola? O que será que essas pessoas sentem?

O objetivo de todo pedinte é conseguir contribuições voluntárias de pessoas que nem sempre estão dispostas a contribuir. Gary Becker, Prêmio Nobel de economia, por quem nutro um grande apreço, acaba de publicar uma intrigante análise sobre a mendicância (Spouses and Beggars: Love and Sympathy, 1996).

Segundo sua teoria, a estratégia do pedinte se baseia na utilização adequada da aparência e da linguagem. Usando vestes, postura, gestos, palavras e situações, ele procura fazer brotar no potencial doador um sentimento de culpa e piedade que, por sua vez, desemboca na simpatia que o leva a repartir um pouco dos seus bens.

Para Becker, o desconforto do doador e os apelos do pedinte é que instigam a pessoa a conceder a ajuda solicitada. O doador dá esmolas, portanto, para se livrar do um mal-estar. Trata-se de uma conduta calculista e de cunho eminentemente utilitário.

O que você acha dessa teoria? Do meu lado, penso que ela se aplica a uma boa parcela dos americanos. Talvez se ajuste também ao caso das pessoas da elite e classe média alta no Brasil. Conheço casos extremos de gente que até desfruta encontrar um pobre, porque isso lhes permite dar esmolas e aliviar culpas.

Mas, essa não é a situação mais comum. Nos dias de hoje, é ilusório para os pedintes esperar que uma legião de "culpados" corra atrás deles para oferecer a sua ajuda. Os pobres que param ao lado dos carros luxuosos nas esquinas das grandes cidades sabem como é difícil emitir o tipo de sinal que comova o motorista e redunde em esmola. Para eles, de fato, o desafio é criar um tipo de manifestação que leve a "vítima" a ajudá-los para se livrar de um desconforto. Nesse campo, Becker está certo.

Por outro lado, verifico que os grandes lances de solidariedade no Brasil são muito mais freqüentes entre os pobres do que entre os ricos. As pessoas que menos têm, são as que mais dão. Basta ver como os doentes pobres se ajudam dentro de um hospital ou num instante de emergência na vizinhança.

Como é comum entre os moradores das favelas e cortiços o empréstimo de pequenas quantidades de alimentos, agasalhos e cobertores na hora da necessidade!

Quem não conhece casos de famílias pobres que, apesar de sua pobreza, recolhem, com o maior despreendimento, um parente ou um amigo (às vezes, até um desconhecido) quando este precisa de um teto?

Será que isso é feito por sentimento de culpa ou para se livrar do necessitado? A teoria de Gary Becker é muito elegante, mas duvido que tenha a amplitude que ele supõe ter.

A esta altura, é legítimo ao leitor perguntar: Afinal, quem é esse professor para discordar de um Prêmio Nobel? Eu também me faço essa pergunta. Mas, não resisto afirmar que a solidariedade da pobreza no Brasil é uma realidade indiscutível e nada tem a ver com sentimentos de culpa ou desconforto.

A conduta dos que mais se ajudam está longe de cálculos utilitários. Fazer-se de morto diante de um pedinte não é comportamento de classe baixa. Ao contrário: a prática generalizada da ajuda mútua, nesse segmento, é que me faz entender porque um país tão desigual como o nosso tem conseguido navegar sem ter caído, até o momento, numa devastadora convulsão social.