Artigos 

Publicado em O Jornal da Tarde, 02/11/1996

Leis em excesso, advogados felizes

Em várias passagens do seu novo livro, The Death of Common Sense (A Morte do Bom Senso), Philip K. Howard pode ser confundido com um anarquista. Mas não é o caso. Ele sabe muito bem que uma sociedade sem lei é uma sociedade sem ordem.

Howard, que é advogado, argumenta que regulamentos demais é tão prejudicial quanto regulamentos de menos. The Death of Common Sense está repleto de exemplos sobre a "regulamentite" que domina a sociedade americana. No campo as saúde ocupacional, por exemplo, a agência que cuida do assunto (Osha), em 25 anos, criou cerca de 4 mil normal superdetalhadas que mais atrapalham do que ajudam. Para preencher as guias de acompanhamento da Osha, as empresas gastam 54 milhões de horas por ano, o que, a US$ 20,00 por hora, dá cerca de US$ 1 bilhão anuais (pág. 93). Tudo em vão, cerca de 80% das normas estão sendo questionadas na justiça.

O mesmo está ocorrendo em relação ao meio ambiente. Os regulamentos antipoluição já encheram 17 volumes impressos em letra pequena. As indústrias estão sendo forçadas a se mudar para regiões longínquas. Em lugar de provocar a limpeza da área suja onde estão, elas criam uma nova área suja em lugares distantes. Os empregos desaparecem das cidades e os trabalhadores são obrigados a viajar grandes distâncias – o que acaba causando mais poluição (pág. 8).

Citando Vaclav Havel Howard diz que, no comunismo, as pessoas não podiam agir sem autorização explícita da nomenclatura. Nas sociedades livres era o inverso: as pessoas podiam fazer o que desejavam, a menos que isso fosse proibido. Com a atual invasão dos regulamentos, transplantou-se para as sociedades livres um verdadeiro sistema comunista em que, antes de se comportar, as pessoas precisam consultar leis e códigos superdetalhados (págs. 20 e 21).

Na concepção de Howard, a rigidez excessiva das leis e regulamentos inibe o uso da razão e de bom senso. A constituição americana, diz ele, é um exemplo de lei simples e flexível – muito mais curta da que as normas de uso do benzeno. A constituição, todo mundo entende, já dura mais de dois séculos e tem sido pouco questionada.

Se os países continuarem a produzir regulamentos tão detalhados, o que será do futuro? O Diário Oficial americano da década de 60 imprimia 15 mil páginas anuais de leis e regulamentos. Hoje, imprime mais de 70 mil! Para evitar as condutas discriminatórias, a agência especializada nesse campo (EPA) criou 10 mil páginas de regulamentos que, no fundo,. estão produzindo muitos efeitos contra o interesse público (pág. 32). Howard narra o caso de um pai que foi impedido de entrar no cinema por estar acompanhado do seu filho de 2 anos. Ele moveu uma ação e ganhou, argumentando que o cinema praticou "discriminação por idade" contra o garoto. Voltou ao mesmo cinema, entrou e a criança perturbou as 200 pessoas que queriam ver o filme paz, sem nada poder fazer (pág. 117). Em casos como esses, a liberdade se confunde com poder (pág. 120).

O pior é que muitos desejam especificar inda mais os regulamentos. O detalhismo já chegou ao extremo. As leis federais e as normas regulamentadoras somam 100 milhões de palavras! (pág. 26). Basta, diz Howard. Até mesmo os juizes estão pedindo simplificação.

Sistemas muito detalhados em nível alto (estadual, federal) induzem o conflito em lugar de favorecer o entendimento. As leis dos direitos civis, por exemplo, deveriam ter trazido mais integração entre os americanos. Mas é o contrário. O contencioso nessa área aumentou 2.200% depois da aprovação daquelas leis (pág. 134). Os americanos são um povo muito litigante. O detalhismo destruiu a cooperação (pág. 49).

Howard destaca algumas exceções. Ele mostra que a base monetária e da taxa de juros têm controles supereficientes. Para tanto, o Federal Reserve Board se utiliza de poucas regras e muito bom senso.

O detalhismo não garante eficiência. A lista de produtos tóxicos elaborada pela Osha já chegou a 600 mil e não pára de crescer (pág. 37). Como se podia esperar, ela é pouco respeitada. Como podem as pessoas seguir regras que não conhecem? (pág. 30). E o custo disso? Há normas de proteção ambiental que custam 100 milhões de dólares para salvar uma vida (pág. 47). Isso está certo?

No mundo real, diz o autor, as pessoas usam critérios mais simples para viver. Elas inventam, emprestam e adaptam. Os regulamentos minunciosos, ao tentar assegurar que nada seja feito de errado, acabam inibindo a criatividade. As pessoas deixam de fazer que desejam (pág. 42).

Regulamentos detalhados geram mais custos do que benefícios, exigem burocracia imensas e estimulam a indústria advocatícia que vive do conflito. De fato, para os advogados espertos, nada melhor do que leis bem detalhadas (pág. 43). Essa é a melhor maneira de encontrar saídas. Para fiscais corruptos é a mesma coisa. A lei do imposto de renda dos Estados Unidos tem 36 mil páginas e é a maior frente de escapatórias, aliás, muito bem usadas pelas empresas de "planejamento tributário" e pelos bilionários (pág. 43).

Ademais, o detalhismo torna os funcionários avessos ao risco. Ninguém quer assumir nada. Na dúvida, eles sugerem logo uma comissão de inquérito. Na indecisão, a comissão de inquérito sugere uma sindicância administrativa. No impasse, a comissão de sindicância manda o caso para a justiça. Isso tudo precipita a morte da responsabilidade (pág. 82). A responsabilidade, defende o autor, não é um conceito grupal, mas pessoal. São as pessoas que, individualmente, precisam assumir responsabilidades (pág. 109).

Howard não propõe a destruição do sistema legal. Mas ele clama por uma acomodação. Ele sonha com leis e regulamentos gerais que preservem o bom senso. O autor argumenta que nenhuma lei deveria ser aprovada sem um cálculo detalhado do seu custo para a sociedade. Os Estados Unidos chegaram ao pior dos dois mundos: montaram um sistema de regulação que custa muito e protege pouco (pág. 11).

The Death of Common Sense é um livro provocativo, tirando alguns exageros, o trabalho de Philip K. Howard merece ser lido. Escrito em linguagem simples e atraente, seus exemplos se aplicam muito bem à "regulamentite" brasileira. Não tem cabimento constar da nossa Carta Magna o valor da hora extra, da taxa de juros e outras preciosidades. O que se pode esperar desse detalhismo? Descumprimento e conflitos. Bom para os advogados.