Publicado em O Jornal da Tarde, 24/02/1999
Leasing de armas
Foi uma matéria estarrecedora. A jornalista Marinês Campos, antevendo a pavorosa safra de 230 homicídios que iriam ocorrer no Carnaval de 1999, revelou a existência de um comércio sofisticado, em São Paulo, que envolve compras, vendas e até empréstimos de armamento pesado (Jornal da Tarde, 10/02/99).
O negociante, identificado na matéria como Juan, verificou que, devido à escalada dos achaques de policiais inescrupulosos, a "operosa classe dos assaltantes" está seriamente descapitalizada e impossibilitada de comprar e pagar pontualmente suas "ferramentas de trabalho".
Para contornar a dificuldade, Juan montou um sistema de empréstimo de armas. Terminado o serviço, os usuários devolvem as pistolas, fuzis e metralhadoras, e pagam a Juan, 20% do valor do assalto, que pode ser parcelado em 3 ou 4 vezes.
Marinês Campos registrou na história da civilização moderna, a inauguração do "leasing" de armas, financiado pelo "cred-crime". Vejam só a que ponto chegamos!
A ação de Juan está longe de ser isolada. Ele se diz incomodado por uma concorrência desleal que não pára de crescer, exemplificando-a com o caso de um borracheiro da zona sul de São Paulo que, em lugar de se concentrar no seu ofício, resolveu diversificar as atividades, adentrando no mercado de armas na base de promoções e crédito generosos.
A tragicômica reportagem é indicativa do colapso dos controles sociais em São Paulo - polícia e justiça.
Num excelente ensaio sobre o assunto (A Polícia, Braudel Papers, no. 22, 1999), José Vicente da Silva e Norman Gall mostram com uma clareza impressionante que, no terreno policial, planejamento e boa administração são muito mais importantes do que a quantidade de recursos.
No período de 1995-98, o Governo do Estado de São Paulo contratou 13 mil policiais; duplicou os salários no setor; comprou 5 mil viaturas; adquiriu 28 mil armas e, apesar de tudo isso, os homicídios cresceram 25%, enquanto que, na maior parte das cidades avançadas, os assassinatos diminuíram dramaticamente como é o caso de Nova Iorque, por exemplo, em que a redução, no mesmo período, foi de 60%.
Está provado. A explosão do crime em São Paulo se deve, em grande parte, à má aplicação dos recursos ou, nas palavras dos autores, a uma enorme profusão de "incentivos perversos", que podem ser assim exemplificados:
1. A Polícia Militar de São Paulo possui 53 coronéis na ativa e 1.000 reformados, recebendo pensões de R$ 11 mil mensais, em média.
2. São Paulo possui 1.400 sargentos trabalhando na PM e 14.000 aposentados, todos com salários integrais.
3. O Estado insiste em ter duas policias rivais onde 11 mil pessoas desempenham tarefas irrelevantes para o trabalho policial e que custam RS$ 180 milhões por ano.
4. Vejam este dado: a banda da Polícia Militar de São Paulo possui 620 músicos, enquanto que a de Nova Iorque tem 30.
Diante de incentivos tão perversos, é óbvio que os recursos rendem pouco e a polícia deixa de fazer o que precisa ser feito. Entre 1992 e 1997, a apreensão de armas caiu vertiginosamente em São Paulo. Resultado: os crimes de morte aumentaram em 50%.
Agora, com a inauguração do "leasing" de armas, só se pode esperar um agravamento da criminalidade que tem como pano de fundo, é verdade, a crise econômica, as aglomerações urbanas, o desemprego, a droga e a precariedade das instituições judiciais.
Como se sabe, a resolução desses problemas, em especial a crise econômica, será demorada. Isso torna ainda mais é urgente a reforma completa das instituições que cuidam do controle social em São Paulo e em todo o Brasil. Há algum tempo fiz uma pesquisa em São Paulo mostrando que a probabilidade de um infrator ser preso em flagrante, indiciado, julgado, condenado e cumprir pena é de apenas 1,5%. Ou seja, o crime compensa.
Segundo estimativas do BID, o custo da violência no Brasil já ultrapassou à casa dos US$ 80 bilhões por ano - o dobro do que o País pleiteia junto ao FMI, com uma dolorosa contrapartida, para sair da crise.
O que vamos esperar? A proliferação do "leasing"? O avanço da corrupção?
Se os seres humanos optaram por viver em cidades adensadas, eles têm de aperfeiçoar as instituições de controle social de modo a elevar consideravelmente o custo do crime para os criminosos em potencial. Sem isso, eles terão de conviver com um crime crescente.
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