Publicado em O Jornal da Tarde, 22/09/1993
Inflação e valores morais
O que você faria ao descobrir que a pessoa com a qual você mantem um romance sincero e está prestes a completar uma relação sexual é sua irmã ou irmão?
Essa foi a pergunta do programa "Você Decide" que estava se iniciando na TV-Globo em 1993. O placar eletrônico do final do programa indicou que a maioria dos que telefonaram aconselharam o casal seguir em frente, completar o ato sexual e ignorar o caráter incestuoso da relação.
Isso me fez pensar sobre a saúde da moral brasileira.
é óbvio que aquele placar não tinha nada de científico. Houve muitas interferências que certamente mascararam o resultado. Afinal, os intérpretes da cena eram marido e mulher na vida real (Bruna Lombardi e Carlos Alberto Ricceli). Ambos eram símbolos sexuais de enorme atração. E, nada garantia que os que telefonaram para a Globo formavam uma amostra representativa da população brasileira.
Ocorre que, estudos realizados com o necessário rigor metodológico revelam uma preocupante deterioração dos nossos valores sociais dos brasileiros, indicando que as pessoas já não sabem mais qual é a norma a seguir - confundindo o vantajoso com o correto.
Os resultados de duas pesquisas de âmbito nacional realizadas pelo IBOPE no 1º semestre de 1993, mostraram que, para 64% dos entrevistados, o brasileiro, para obter uma vantagem, age ilegalmente, especialmente quando é pequeno o risco de ser pêgo.
Mais grave do que isso, 93% das pessoas, acham que, o brasileiro sistematicamente tenta comprar as autoridades quando comete alguma infração! Sim, 93%!
é um número assustador, demonstrando que o suborno está se tornando um comportamento esperado e não inesperado. Para 63% dos pesquisados, a totalidade ou a maioria dos guardas rodoviários e dos fiscais, por exemplo, deixam de multar o infrator em troca de uma "caixinha".
Em suma, para a maior parte dos brasileiros, tentar subornar é uma atitude de bom senso; aceitar a multa como forma de prevenir desvios futuros, é uma atitude de mau senso. Isso é preocupante. As pessoas estão perdendo a noção do certo e do errado. Naqueles pesquisas, para 65% de nossa população, o brasileiro é um ser desonesto!
Um estado de tamanha desorientação costuma ocorrer só em casos de grandes guerras e surtos de hiper-inflação aguda. Lionel Richard (A República de Weimar, São Paulo: Cia. das Letras, 1989), conta que os alemães, na hiper-inflação de 1922-23, se entregaram às maiores orgias sendo que o roubo, os saques, a pilhagem, os assaltos, o tráfico de drogas, o jogo, a prostituição e o homossexualismo explodiram na mesma velocidade da explosão dos preços - quando a bacia que carregava os bilhões de marcos valia mais do que os próprios marcos.
No fundo, esse tipo de desórdem normativa se acentua quando as aspirações prescritas pela cultura são inatingíveis pelo uso dos meios legítimos. A frustração leva as pessoas a perderem o necessário apego emocional aos valores e normas sociais. Eles evaporam como éter e ninguém se importa com a sua debandada. é o estado de anomia. é o Brasil de hoje onde os desvios de comportamento, a agressividade e as chacinas se multiplicam para fazer predominar o "vale tudo". Não é a toa que 51% dos brasileiros acham justificável desobedecer a lei, desde que isso não prejudique ninguém e quase 36% aceitam o roubo se for para comer.
O estado anômico está instalado. A recessão e a inflação que campearam no Brasil durante décadas inverteram nossos valores básicos.
Para a grande maioria das pessoas, a sociedade brasileira faz demandas incompatíveis. De um lado, os meios de comunicação e a propaganda valorizam uma vida mais humana e mais confortável; de outro, a sociedade nega os meios legítimos para se chegar a essa vida. A conseqüência desta inconsistência é o aumento da desorientação, o desrespeito à lei e a explosão da criminalidade.
Tudo isso leva muitos ao fatalismo. Para 69% dos brasileiros, os seus sonhos tornaram-se irrealizáveis. Para ser feliz, é melhor que cada um se conforme com o que tem hoje. Cerca de 75% recomendam se preocupar com o presente pois o futuro é incerto. Para essas pessoas, as coisas só poderão melhorar por um lance de sorte. Daí o apego ao lúdico. A esperança de dias melhores se resumem às loterias, jogo do bicho, concurso de TV e, logo mais, aos cassinos.
é nesse ambiente que crescem as nossas crianças. A família, que sempre foi a grande correia de transmissão dos valores básicos da sociedade, já não sabe o que ensinar mesmo porque na televisão e na rua seus filhos vêem sugestões de conduta bastante diferentes das convencionais. Aliás, os próprios pais emudecem quando se vêem atingidos pela desilusão do seu fracasso. Afinal, que moral têm eles para recomendar aquilo que não deu certo?
A crise econômica nos levou à crise moral. A superação da recessão e da inflação é tarefa fundamental para se voltar a construir um quadro de valores que dê um mínimo de previsão dos comportamentos futuros. Será uma obra para gerações - tanto mais longa quanto mais adiarmos o primeiro passo. Será que temos de passar pela devastação da hiper-inflação para então começarmos a juntar os cacos na dura maratona de reconstrução moral?
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