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Apresentado no Congresso do Coppead, Rio de Janeiro, 08/10/2004.

Informalidade: Estragos e Soluções

O Problema da Informalidade

A informalidade continua sendo um dos mais graves problemas do mercado de trabalho do Brasil. De um total de 76 milhões de pessoas que trabalhavam em 2003, cerca de 46 milhões (60%) estavam na informalidade e apenas 30 milhões (40%) na formalidade.

A grande maioria dos brasileiros que trabalham no mercado informal não dispõe das mais rudimentares proteções das leis trabalhistas ou previdenciárias. Tais pessoas, quando adoecem, por exemplo, não contam com uma licença remunerada para tratar da saúde; quando envelhecem, não podem ser aposentadas; e depois da morte não deixam nenhum amparo aos seus descendentes.

A desproteção do mercado informal é um fenômeno desumano. Trata-se de uma das mais duras formas de exclusão social. Mas assim é o mercado de trabalho do Brasil. Ele está dividido em dois mundos: o dos "incluídos", referentes aos 40% que se protegem pelas leis trabalhistas e previdenciárias e o dos "excluídos", referentes aos 60% que vivem em permanente incerteza.

A desproteção gerada pela informalidade ultrapassa o mundo dos excluídos e atinge as finanças públicas, de maneira mais direta, a Previdência Social. Das 76 milhões de pessoas que trabalham, apenas 30 milhões recolhem contribuições previdenciárias. As 46 milhões nada recolhem - o que contribui para o crônico déficit da Previdência Social. Sim porque esse Instituto tem uma série de responsabilidades universais que se aplicam a contribuintes e não contribuintes como é o caso, por exemplo, do pagamento de benefícios assistenciais aos idosos carentes, aos portadores de deficiência e outros.

Para o ano de 2004, o déficit da Previdência Social foi estimado em cerca de R$ 75 bilhões. O financiamento desse déficit através de empréstimos junto ao sistema financeiro tem um impacto dramático na elevação da taxa de juros o que, por sua vez, desestimula os investimentos e inibe a geração de empregos.

Como se vê, os estragos da informalidade atingem a toda a sociedade. Uma parcela expressiva do desemprego atual decorre da falta de investimentos causada pelos motivos acima apontados. Por isso, informalidade tem muito a ver com o desemprego. Os tentáculos de exclusão, assim, desprotegem quem trabalha e submetem quem não trabalha a longos períodos de desocupação.

A redução da informalidade é, assim, um dos problemas mais urgentes a serem resolvidos no Brasil. Trata-se de uma questão complexa, sem dúvida, mas de possível solução, como veremos no final deste ensaio.

As Causas da Informalidade

O mercado informal abriga pessoas em situações diferentes. Dos 46 milhões de brasileiros que integram esse mercado, cerca de 20 milhões (43%) são empregados sem registro em carteira; 15 milhões (33%) são trabalhadores por conta própria; 6 milhões (13%) são pessoas que trabalham sem remuneração; 4 milhões (9%) são empregados domésticos, também sem registro em carteira; e 1 milhão (2%) são empregadores.

Agregando-se de outra maneira, verifica-se que cerca de 25 milhões de pessoas (54%) trabalham sob relações de subordinação (empregados sem registro, empregados domésticos e empregadores) e que deveriam estar protegidas pela legislação trabalhista e 21 milhões (46%) trabalham por conta própria ou sem remuneração, havendo, neste caso uma parcela que trabalha na condição de empregados o que, de certa forma, engrossa o primeiro grupo.

O que leva as pessoas do primeiro grupo a trabalharem sem as proteções legais? Isso se deve, em parte, ao abuso de empregadores que, prevalecendo-se de um excesso de mão-de-obra existente no mercado de trabalho do Brasil, em especial, de pessoas de pouca qualificação, contratam trabalhadores sem observar os mandamentos legais.

Mas isso se deve também ao caráter extremamente rígido e complexo da legislação atual. Estudos realizados pelo Banco Mundial em mais de 100 países mostram que o Brasil possui uma das legislações trabalhistas mais complexas e mais rígidas do mundo.

Tais estudos examinaram várias dimensões da legislação trabalhista, destacando-se, como principais, as seguintes: (1) flexibilidade de contratação; (2) condições de emprego; (3) flexibilidade de demissão. Nessas três dimensões e também em uma dimensão-síntese que analisou um índice de rigidez das leis trabalhistas, o Brasil ficou acima dos demais países da América Latina e Caribe e dos próprios países ricos e integrantes da OCDE como mostra o gráfico 1.

Gráfico 1 - Rigidez das Leis Trabalhistas

Fonte: Doing Business 2005, Banco Mundial, 2004.

O fenômeno da rigidez da lei é bastante conhecido e contrasta com a "flexibilidade selvagem" que ocorre no mercado de trabalho do Brasil. Ou seja, temos leis rígidas e mercado flexível. Como explicar isso?

As leis de proteção - complexas e onerosas para a maioria dos agentes econômicos - se restringem ao mundo do emprego e nada amparam os que estão no mundo do trabalho, ou seja, protegem apenas quem está em relações de subordinação (empregado-empregador) com registro em carteira.

A complexidade e o alto custo de uma contratação legal podem ser apreciados na tabela abaixo que se refere à contratação de trabalhadores horistas no setor industrial. Esse tipo de contratação requer a obediência a, no mínimo, 18 itens - todos eles inegociáveis - o que gera uma despesa de 103,46% do salário nominal.

Tabela 1 - Despesas de Contratação de Trabalhadores Horistas na Indústria

Tipos de Despesas

% sobre o Salário

Grupo A -Obrigações Sociais

 

Previdência Social

20,00

FGTS

8,50

Salário Educação

2,50

Acidentes do Trabalho (média)

2,00

SESI/SESC/SEST

1,50

SENAI/SENAC/SENAT

1,00

SEBRAE

0,60

INCRA

0,20

Subtotal A

36,30

Grupo B -Tempo não Trabalhado I

 

Repouso Semanal

18,91

Férias

9,45

Abono de Férias

3,64

Feriados

4,36

Aviso Prévio

1,32

Auxílio Enfermidade

0,55

Subtotal B

38,23

Grupo C -Tempo não Trabalhado II

 

13º Salário

10,91

Despesa de Rescisão Contratual

3,21

Subtotal C

14,12

Grupo D -Incidências Cumulativas

 

Incidência Cumulativa Grupo A/Grupo B

13,88

Incidência do FGTS s/13º sal.

0,93

Subtotal D

14,81

TOTAL GERAL

103,46

Fonte: Constituição Federal e CLT

A tabela se refere a horas efetivamente trabalhadas ás despesas referentes às contribuições sociais e às remunerações dos tempos não trabalhados. Na prática, uma empresa que contrata um trabalhador por R$ 1.000,00 por mês tem uma despesa total de R$ 2.030,00 decorrente da aplicação das leis atuais.

Para atender à burocracia e aos custos gerados pela lei atual, as empresas precisam estar muito bem preparadas do ponto de vista administrativo e financeiro. Quando se trata de mega-empresas que produzem para consumidores de alta renda e para o mercado internacional, a burocracia e os custos não são insuperáveis mesmo porque tais empresas, além dos direitos legais, concedem uma série de benefícios decorrentes de negociação. As despesas são toleráveis pela natureza dos bens produzidos e do mercado a que se destinam. Mas, para a esmagadora maioria de empresas do Brasil - as micro e pequenas - tanto a complexidade das leis quanto os seus custos constituem obstáculos quase intransponíveis.

Se considerarmos apenas o total de empresas formalmente estabelecidas no país - cerca de 4,1 milhões, observa-se que mais de 98% são micro e pequenas empresas, conforme indica a tabela 2.

Tabela 2 - Empresas por Tamanho no Brasil

 

Porte

 

Setor

Micro e Pequena

Média

Grande

Total 

Indústria

550.112

8.170

1.661

559.943

Comércio

2.045.185

4.609

2.684

2.052.478

Serviços

1.486.825

10.336

14.761

1.511.922

Total

4.082.122

23.115

19.106

4.124.343

Fonte: IBGE, Cadastro Central de Empresas, 2000.

O Brasil é um grande país mantido, em grande parte, por "empresas-formiguinhas". São empresas que têm 10, 20 ou 30 empregados, das mais variadas qualificações e com grande concentração entre os menos qualificados. No conjunto, as micro e pequenas empresas respondem por quase 50% do emprego. É nelas que mais incide o problema da informalidade, em grande parte, decorrente do excesso de rigidez das leis trabalhistas e das despesas de contratação.

O mesmo estudo do Banco Mundial mostra que a informalidade de empresas e do trabalho aumenta nos países de alta rigidez das leis trabalhistas, conforme indica o gráfico 2.

Gráfico 2 - Informalidade e Leis Trabalhistas

Fonte: Doing Business 2005, Banco Mundial, 2004.

Em 2003, o National Bureau of Economic Research publicou um amplo estudo que analisa as questões do emprego, desemprego e informalidade à luz da flexibilidade ou rigidez das leis trabalhistas em 85 países (Simeon Djankov e colaboradores, "The Regulation of Labor", Washington, NBER, 2003).

Dentre as principais conclusões daquele estudo destacam-se as seguintes: (1) os países ricos regulam o trabalho muito menos do que os países pobres; (2) níveis mais altos de regulação estão relacionados com informalidade e altas taxas de desemprego, especialmente entre os mais jovens; (3) dentre os 85 países estudados, o Brasil é o mais regulamentado de todos, apresentando as mais altas taxas de informalidade e desemprego, mesmo nos períodos de forte crescimento econômico.

Os dados para se chegar a um índice de regulação foram baseados no exame das leis trabalhistas, sistemas de negociação coletiva, e leis da previdência social.

Dentro das leis trabalhistas, o estudo examinou a flexibilidade ou rigidez para contratar em tempo parcial e por prazo determinado; tempo de férias; descansos remunerados; jornada de trabalho; valor e restrição das horas extras; trabalho em feriados, sábados e domingos; número de feriados remunerados; duração e remuneração das licenças; valor do salário mínimo; regras de demissão, indenizações e outras proteções e demais custos da dispensa; leis de aprendizagem e treinamento e custo para as empresas; e outros.

O mesmo detalhamento foi feito para as leis previdenciárias e para o sistema de negociação coletiva.

O índice de rigidez das leis trabalhistas variou entre 0,76 (Hong Kong) e 2,40 (Brasil). A rigidez das leis brasileiras é muito maior do que a de todos os países desenvolvidos e ainda do que a de países do mesmo nível de desenvolvimento do Brasil como é o caso do Egito (1,78), Filipinas (1,61), Marrocos (1,28), Romênia (1,76), Equador (1,76), Jordânia (1,46), República Dominicana (1,65), Jamaica (1,16), Peru (1,67) Colômbia (1,99), Rússia (2,21), Tailândia (1,78), Venezuela (2,32), México (2,01), Chile (1,56), Uruguai (1,27), Argentina (1,55).

O índice médio foi de 1,76 para esse grupo de países. Nos países mais ricos, o índice médio foi de 1,24. Além de Hong Kong (0,76), vários outros países apresentam um índice menor do que 1, como é o caso da Austrália (0,92), Cingapura (0,85), Áustria (0,80), Estados Unidos (0,92) e Dinamarca (0,95).

O estudo destaca que a rigidez na regulação inibe a agilidade dos negócios e a competitividade das empresas e, consequentemente, o emprego e a formalização dos contratos de trabalho, com graves prejuízos para os trabalhadores e para a Previdência Social. Com menos competitividade as empresas têm menos lucros, investem menos e geram menos empregos.

No Brasil, a informalidade só tem crescido nos últimos vinte anos. Mesmo nos períodos de aquecimento econômico, o problema se agrava. Em meados de 2004, por exemplo, quando a economia dava claros sinais de reativação (o PIB crescera 5,7% no primeiro semestre do ano), o emprego informal dos empregados sem carteira assinada, entre julho de 2003 e julho de 2004, cresceu 9,6%, enquanto o mercado formal cresceu apenas 2,4%, segundo os dados da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE realizada em julho de 2004.

Ou seja, mesmo com um PIB crescente, a informalidade nas regiões metropolitanas entre os empregados aumentou com uma velocidade quatro vezes superior do que a formalidade. Além dos empregados, convém considerar que a proporção de trabalhadores por conta própria aumentou quase 4% no período considerado.

Regulação Legal e Informalidade

Todo mercado de trabalho precisa ser regulado. Mas há vários tipos de regulação. A regulação existente no Brasil é toda baseada na lei e não na negociação. Trata-se de uma regulação extremamente rígida e que não permite transações entre empregados e empregadores de diferentes regiões, setores econômicos ou tamanho de empresa.

Alguns exemplos dessa rigidez encostam nas raias do ridículo. A CLT estabelece que a hora noturna tem apenas 52 minutos e 30 segundos. Mesmo que empregados e empregadores queiram usar seu bom senso e estabelecer uma hora de 60 minutos, a lei brasileira não permite.

Da mesma forma, a CLT estabelece uma hora para almoço. Se os empregados quiserem almoçar em 45 minutos para sair 15 minutos mais cedo, a legislação atual não os deixa.

Se um empregador de uma propriedade rural quiser pagar as horas de transporte dos trabalhadores na base da média do tempo gasto no ônibus transportador, a lei não dá apoio, porque exige que cada trabalhador seja remunerado pelo número de minutos exatos que fica no ônibus.

Os tribunais do trabalho, é claro, têm de cumprir a lei. Isso gera um grande número de ações trabalhistas, todas der mesma natureza, e obriga os juizes a dirimirem os mesmos problemas todos os dias. Suas sentenças não têm a menor ação na prevenção de futuras violações.

O excesso de ações na Justiça do Trabalho tem a ver muito mais com as leis do que com os juizes. Se tudo é estabelecido em lei - e não na negociação - os juizes têm a responsabilidade de declararem nulos os acordos que contrariam a lei. E assim tem acontecido. Os Tribunais Regionais do Trabalho e o próprio Tribunal Superior do Trabalho têm derrubado inúmeras convenções coletivas nas quais as partes, por acharem mais conveniente, estabeleceram mecanismos que ferem a lei como é o caso da hora noturna de 60 minutos, o encurtamento do horário de descanso e o pagamento proporcional do tempo "in tinere".

Um grave subproduto do excesso de rigidez na contratação do trabalho no Brasil diz respeito à insegurança jurídica que isso gera para as empresas e os trabalhadores. Na hora de contratar informalmente, "tudo são flores". Mas na hora de demitir, "tudo são desentendimentos". O trabalhador despedido e que teve os seus direitos violados durante a contratação recorre, com razão, à Justiça do Trabalho.

Depois de tantos estragos feitos pela informalidade, a lei se torna flexível. Mais especificamente, perante o juiz, a empresa que violou a lei e o trabalhador que foi prejudicado são instigados a fazer um acordo sobre as verbas não pagas.

Neste momento, reúnem-se as várias verbas em um só montante que passa a ser o objeto do acordo e, com toda a "flexibilidade" as partes negociam o que julgam melhor para si e, em 50% dos casos, encerram a pendência na primeira audiência. Para os calculistas sobra ainda a alternativa de apelar para as várias instâncias da Justiça do Trabalho e fazer o processo rolar por vários anos. Não é a toa que o Brasil possui cerca de 2 milhões de processos na Justiça do Trabalho enquanto que o Japão, por exemplo, tem apenas 2.500. O problema da lentidão da Justiça está ligado à natureza da regulação que rege o contrato de trabalho. No Japão, as leis estimulam o consenso e abrem um grande espaço para a negociação na hora de contratar. No Brasil, as leis fecham a porta para a negociação e instigam o conflito.

O conflito também tem um custo para a sociedade e para as partes em geral. Ou seja, a informalidade causa estragos em várias áreas. No Brasil, a Justiça do Trabalho gasta muito mais de R$ 1.000 para julgar uma ação cujo valor foi fixado inicialmente em R$ 1.000. Trata-se de uma taxa de retorno negativa que, repetindo, não decorre dos juizes mas sim das leis complexas, rígidas e onerosas que temos em nosso país.

Como Reduzir a Informalidade?

A redução ou eliminação da informalidade depende de importantes mudanças na legislação trabalhista e previdenciária. Basicamente os contratos de trabalho precisariam ser melhor ajustados às peculiaridades das empresas e dos trabalhadores - o que só pode ser feito através de negociação. De nada adianta manter uma lei "tamanho único" para uma realidade tão diversificada como é o caso do mercado de trabalho do Brasil. A modernização da legislação tem de se pautar pela abertura de espaços para negociar contratos diferenciados.

Mas a solução não se resume nisso. Como vimos, cerca de 54% dos brasileiros trabalham sob condições de subordinação (empregado-empregador) mas há uma grande proporção (46%) composta de pessoas que trabalham fora dessas condições (trabalhadores por conta própria).

Isso significa que o ataque à informalidade tem de ser feito com instrumentos específicos. O que serve para empregados e empregadores não serve para os trabalhadores por conta própria e vice-versa. A maioria das soluções para empregados e empregadores depende de mudanças na legislação trabalhista enquanto que a maioria das soluções para os trabalhadores por conta própria depende de mudanças na legislação previdenciária. Os parágrafos que seguem apresentam algumas sugestões nesse sentido.

Um Simples Trabalhista para os Empregados

As medidas mais indicadas para aliviar a rigidez na relação de emprego se referem à simplificação da legislação e à abertura de maiores espaços para se negociar contratos diferenciados entre empregados e empregadores. O Brasil precisa de um "Simples Trabalhista" que alivie as despesas e a burocracia na contratação realizada pelas micro e pequenas empresas.

Nos primeiros três anos de existência o Programa do SIMPLES formalizou quase 3 milhões de postos de trabalho. O SIMPLES, além de reduzir despesas, diminuiu substancialmente a burocracia contábil, estimulando os micro-empresários a registrar seus empregados.

A tônica da simplificação tem de presidir as mudanças trabalhistas, em especial, para as micro e pequenas empresas e para os grupos mais vulneráveis (menos educados, jovens, mulheres, rurais e pessoas de meia idade). O SIMPLES poderia ser ainda mais simples se, mantida a contribuição previdenciária, a lei tivesse aberto a possibilidade das partes negociarem o que é possível negociar.

É claro que uma intensificação da fiscalização tem também a sua importância no sentido de induzir as partes a respeitarem a legislação - qualquer que seja. Mas não se pode, é claro, depender unicamente da fiscalização para resolver o problema dos 25 milhões de empregados e empregadores que estão no mercado informal.

Um Novo Regime de Aposentadoria

E para os trabalhadores por conta própria, o que fazer? É claro que a negociação não se aplica neste caso. A formalização dos trabalhadores por conta própria exige uma engenharia no lado da Previdência Social. Será necessário criar um regime especial de previdência, com alíquotas baixas e um feixe de estímulos à vinculação com o sistema da Previdência Social. Como chegar a esse feixe de estímulos? Não basta reduzir as alíquotas. Afinal, o não recolhimento de nada - como ocorre na informalidade - é mais barato do que qualquer alíquota baixa, por mais generosa que seja.

Desde a época de Hélio Beltrão, Ministro da Desburocratização nos idos dos anos 80, se discute a criação de um cartão único de identificação que conteria os dados que hoje estão espalhados na carteira de identidade, na carteira de trabalho, Secretaria da Receita Federal, Previdência Social e vários outros. Essa é a sugestão a ser perseguida especificamente para o caso dos trabalhadores por conta própria, estendendo-a, mais tarde, para os empregados e empregadores.

A instituição de um cartão único de identificação - o cartão da cidadania - além de promover uma colossal redução de pessoal e despesas para a máquina pública - permitirá ao Estado mais facilidades para verificar o cumprimento dos deveres dos cidadãos. Para estes, haveria uma simplificação enorme na hora de obter os benefícios sociais (seguro-desemprego, tratamento médico, aposentadoria e pensão, programas de treinamento e outros), eliminando-se ainda a dor de cabeça que se tem para tirar segundas vias dos diversos documentos.

O Japão adotou em 2002 essa medida. Através de um cartão magnético, o governo interligou os vários sistemas de informações governamentais. O cartão, que é ambicioso (o brasileiro pode ser mais simples, pelo menos no começo), tem onze dígitos que permitem identificar o nome e endereço dos 126 milhões de japoneses, assim como o sexo, idade e sua situação perante os órgãos dos governos municipais, provinciais e nacional, inclusive polícia e Justiça.

No Brasil, a introdução de um cartão único pode ajudar a combater a informalidade dos que trabalham por conta própria e também dos trabalhadores de empresas que não registram seus empregados.

É claro que a medida não é milagrosa. Ela exige a criação de um regime especial de aposentadoria. Este teria de se basear no regime de capitalização, começando com uma contribuição bem baixa (a critério do contribuinte) para atrair os brasileiros que trabalham na informalidade. É claro que o valor da aposentadoria seria proporcional à contribuição do trabalhador ao longo da vida.

Em que o cartão único ajudaria? Todos os brasileiros teriam de possuir esse cartão. Ele funcionaria como uma espécie de passaporte da cidadania. Seria uma maneira de induzir os 46 milhões de trabalhadores que hoje estão na informalidade a se filiarem a um sistema de aposentadoria. Sem o cartão, eles ficariam impedidos de realizar transações e ter acesso aos benefícios públicos.

Já há várias sementes plantadas nesse campo. A Lei 9.454/97 instituiu o "número único" do registro da identidade civil e aguarda, até hoje, a respectiva regulamentação. Em 1994, o Ministério da Previdência e Assistência Social criou o Cadastro Nacional de Informações Sociais, integrando vários bancos de dados - com excelentes resultados. Aquele ministério já emitiu um cartão magnético para os contribuintes individuais com o fim de facilitar a sua contribuição ao INSS.

Ou seja, o Brasil já está no caminho do cartão único. Como se sabe, a reforma da Previdência Social resolveu apenas uma parte dos problemas. Seria útil que a nova reforma viesse a dar esse passo arrojado, integrando-se com outros órgãos do governo e emitindo um cartão de identificação para todos os brasileiros.

Ninguém tem dúvida de que o Brasil precisa reduzir drasticamente a informalidade. Com a implantação do cartão-único, muitas fórmulas criativas poderiam ser praticadas para incluir milhões de pessoas que hoje estão fora do sistema de aposentadoria. Até mesmo as incluídas nos programas de renda mínima - bolsa-família e outros -, no recebimento do benefício, poderiam entrar com uma contra-partida (por exemplo, um desconto de 3% ou 4% do que têm a receber), o que lhes daria direito a usufruir de uma aposentadoria proporcional à sua contribuição.

No início o benefício seria pequeno. Mas, na medida em que as pessoas fossem progredindo em suas carreiras, aumentariam as suas contribuições ao sistema previdenciário podendo chegar aos limites de um empregado ou empregador dos dias atuais - o que garantiria uma aposentadoria igual á deles.

Dentro dessa sugestão cabe a simplificação da vida dos trabalhadores por conta própria e empregadores proposta pelo governo federal no Projeto da Pré-Empresa. O governo abrirá mão de todos os tributos, exceto o INSS que será restrito a 1,5% do faturamento da pré-empresa a cada mês. Com isso, os trabalhadores por conta própria teriam um estímulo para se vincular à Previdência Social.

 

Conclusão

A introdução de mudanças nas leis trabalhistas e previdenciárias é sempre motivo de debates acalorados e cercados de emoção, ideologia e confrontação política. Isso tem sido assim em quase todos os países. Os incluídos, erroneamente, se sentem ameaçados nos seus direitos e reagem, mobilizando, com sua capacidade de "lobby", a imprensa, os parlamentares e a opinião pública para que se posicionem contra as mudanças. Isso já ocorreu no Brasil inúmeras vezes e acabou abortando as tímidas propostas de mudanças lançadas nessa área.

Para contornar tais resistências muitos países têm optado por aprovar mudanças que entram em vigor muitos anos depois. Isso foi feito, por exemplo, com mudanças que visaram aumentar a idade de aposentadoria, reduzir o tempo de seguro desemprego ou criar novas formas de contratação em vários países da Europa. A implantação imediata dessas mudanças teria sido impossível. Diante das reações mencionadas, os governantes tendem a vacilar porque sabem que os eleitores se vingam deles na primeira eleição - derrotando-os.

Nesse sentido, a postergação da entrada em vigor das medidas funciona como um atenuante das resistências que se originam da cidadela protegida dos que estão no mundo dos incluídos, pouco se interessando com o destino dos excluídos.

Ademais, tais mudanças só podem ser aprovadas depois de uma séria campanha de esclarecimento da população. A pedagogia dos políticos é essencial. Afinal, não é necessário revogar direitos adquiridos para introduzir novos. O medo dos incluídos não se sustenta perante uma boa didática. A explicação dessa questão é de fundamental importância para o sucesso das mudanças.

Isso significa dizer que a "venda" das mudanças assim como a sua aprovação e implementação dependem muito de uma liderança clara por parte de forças políticas. Na Inglaterra, Margareth Thatcher exerceu essa liderança ao introduzir mudanças duradouras nas leis trabalhistas e previdenciárias - mudanças essas que foram mantidas pelo seu opositor ao chegar ao poder - Tony Blair. Na Nova Zelândia, profundas modificações foram explicadas e aprovadas com base na liderança de um Primeiro Ministro do Partido Trabalhista - William Birch. Na Espanha, as mudanças foram explicitadas em um ambiente de Pacto Social, tendo na liderança o Primeiro Ministro socialista Felipe González.

No Brasil, a liderança é essencial. Uma boa pedagogia é decisiva. Além disso, conviria tentar esse gradualismo de implantação nas mudanças que se fazem necessárias. A própria introdução do cartão único deveria ser uma providência gradual, começando-se com poucas áreas de cobertura (talvez, legislação trabalhista e previdenciária apenas), para, depois, incluir outros assuntos que também exigem simplificação (registro de identidade, situação tributária, antecedentes policiais, incidências judiciais e outros).

Os aspectos tecnológicos desses controles já estão dominados nos dias de hoje. Na época em que tais idéias foram lançadas pelo então Ministro Hélio Beltrão, da desburocratização, os recursos tecnológicos para a construção de grandes bancos de dados (interligados) eram desconhecidos. Atualmente, o problema é apenas de reunir os recursos financeiros para concretizar tais planos.

O fato concreto é que o Brasil não pode continuar com esse nível (crescente) de informalidade no mercado de trabalho. A sangria na Previdência Social é muito grave. A desproteção dos trabalhadores é desumana. E a marginalização das empresas que praticam tais violações é inevitável. Em suma, estamos diante de uma situação em que todos perdem e que precisa ser revertida para uma realidade na qual todos ganham. A tarefa é complexa e exige gradualismo. O importante, porém, é dar o primeiro passo.