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Publicado em O Estado de S. Paulo, 19/11/2002.

Cartão único e informalidade

Desde a época de Hélio Beltrão, Ministro da Desburocratização nos idos dos anos 80, se discute a criação de um cartão único de identificação que conteria os dados que hoje estão espalhados na carteira de identidade, na carteira de trabalho, Secretaria da Receita Federal, Previdência Social, Delegacia de Trânsito e vários outros.

Além de se promover uma colossal redução de pessoal e despesas para a máquina pública, o Estado teria mais facilidades para verificar o cumprimento dos deveres dos cidadãos. Para estes, haveria uma simplificação enorme na hora de obter os benefícios sociais (seguro-desemprego, tratamento médico, aposentadoria e pensão, programas de treinamento e outros), eliminando-se ainda a dor de cabeça que se tem para tirar segundas vias dos diversos documentos.

O Japão acaba de adotar essa medida. Através de um cartão magnético, o governo interligou os vários sistemas de informações governamentais. O cartão tem onze dígitos que permitem identificar o nome e endereço dos 126 milhões de japoneses, assim como o sexo, idade e sua situação perante os órgãos dos governos municipais, provinciais e nacional, inclusive polícia e Justiça.

No Brasil, a introdução desse artefato, além de outras, poderia ser usado como elemento auxiliar para combater a informalidade nas empresas e no trabalho.

É claro que a medida não é milagrosa. Ela seria parte de uma reforma da Previdência Social que começasse por separar a assistência social do sistema de aposentadoria. Este teria de se basear no regime de capitalização, começando com uma alíquota de contribuição bem baixa (3% ou 4%) para atrair os 60% de brasileiros que trabalham na informalidade. É claro que o valor da aposentadoria seria proporcional à contribuição do trabalhador ao longo da vida.

Em que o cartão único ajudaria? Todos os brasileiros teriam de possuir esse cartão. Ele funcionaria como uma espécie de passaporte da cidadania. Seria uma maneira de "convencer" os 42 milhões de trabalhadores que hoje estão na informalidade a se filiarem a um sistema de aposentadoria. Sem o cartão, eles ficariam impedidos de realizar transações e ter acesso aos benefícios públicos.

Já há várias sementes plantadas nesse campo. A Lei 9.454/97 instituiu o "número único" do registro da identidade civil e aguarda, até hoje, a respectiva regulamentação. Em 1994, o Ministério da Previdência e Assistência Social criou o Cadastro Nacional de Informações Sociais, integrando vários bancos de dados - com excelentes resultados. Agora, aquele ministério vai emitir um cartão magnético para os contribuintes individuais com o fim de facilitar a sua contribuição ao INSS.

Ou seja, o Brasil já está no caminho do cartão único. Seria útil que a reforma da Previdência Social, prometida pelo governo Lula, viesse a dar esse passo arrojado, integrando-se com outros órgãos do governo e emitindo um cartão de identificação para todos os brasileiros.

Sei que a proposta é explosiva. Mas o momento é propício. Os sistemas de aposentadoria do setor privado (INSS) e do setor público (nos três níveis de governo) terão um déficit de R$ 70 bilhões em 2002. Esse déficit cresce a passos largos e obriga o governo a tomar dinheiro emprestado no mercado, o que eleva os juros, desestimula os investimentos e inibe o emprego. De cada três postos de trabalho criados, dois são no setor informal.

Ninguém tem dúvida de que o Brasil precisa reduzir drasticamente a informalidade. Com a implantação do cartão-único, muitas fórmulas criativas poderiam ser praticadas para incluir milhões de pessoas que hoje estão fora do sistema de aposentadoria. Até mesmo as incluídas nos programas de renda mínima, bolsa-escola, vale-alimentação etc., no recebimento do benefício, poderiam entrar com uma contra-partida (por exemplo, um desconto de 3% ou 4%), o que lhes daria direito a usufruir de uma aposentadoria proporcional à sua contribuição.

Muitas outras alternativas poderiam ser praticadas de modo a vincular o benefício à adesão à Previdência Social, via cartão único. Acho que vale a pena perseguir esse caminho.