Publicado na Revista do Ministério do Trabalho,18/10/00
Como reduzir a informalidade?
José Pastore
Apesar dos primeiros meses do ano 2000 terem mostrado uma melhora no emprego formal, a informalidade já assumiu proporções alarmantes. Segundo dados do Ministério da Previdência Social, quase 60% dos brasileiros ocupados não possuem vínculos com aquele instituto (Pinheiro e Miranda, 2000).
São quase 40 milhões de pessoas: 14 milhões trabalham por conta-própria; outros 14 milhões são empregados não registrados; 6 milhões não têm remuneração; 3,8 milhões são empregados domésticos; e mais de 1 milhão, empregadores.
Há 9,5 milhões de microempresas e pessoas que trabalham por conta própria, na informalidade, excluindo-se desta cifra, as unidades rurais, os empregados domésticos e os "trabalhadores de rua". Quando se leva isso em conta, a informalidade é maior ainda (IBGE, 1999).
O desatrelamento da informalidade da seguridade social desprotege os trabalhadores e o Estado. Aqueles ficam sem proteções mínimas para os momentos críticos da vida (falta de trabalho, velhice e morte). Este fica sem receita para cumprir suas pesadas obrigações nas áreas da saúde, acidentes e previdência social.
A solução desse problema exige dois tipos de ação. De um lado, é bastante razoável buscar formalizar uma parte do mercado de trabalho através de esforços adicionais de fiscalização. De outro, é imperioso desenhar um novo sistema de regulação para atacar a informalidade.
A criação de empregos de boa qualidade depende de crescimento, educação e legislação. O Brasil está fraco nas três áreas. Trabalhadores com educação precária trabalham em postos de trabalho de má qualidade, gerando situações de reduzida produtividade, baixa renda e alta instabilidade (Barros e Mendonça, 1995; Amadeo e outros, 1996; OIT, 1998).
Além disso, a chamada "legalidade integral" exige que, para empregar com proteções sociais, as empresas têm de cumprir um rosário de mais de 20 regras inegociáveis. Uma puxa a outra. É impossível obedecer a uma sem obedecer as demais. Por isso, contrata-se pouco formalmente.
O mercado informal é um enigmático caleidoscópio composto por trabalhadores por conta-própria, empregados que trabalham por tarefa (agricultura, construção civil, serviços e outros), gente que trabalha de forma intermitente, nas vias públicas, ora como empregado, ora como ambulante e até pessoas qualificadas e com trabalho mais contínuo - mas todas em constante movimento de entre e sai que chega a confundir o observador desavisado.
Até mesmo para os que decidem aderir à categoria de contribuintes individuais da Previdência Social, a situação é fluida. Com frequência, param de contribuir, e voltam à informalidade; em seguida, reentram na formalidade; mais adiante, retornam ao mercado informal; e, passados alguns anos, ficam desalentados para pagar os atrasados, abandonando, por completo, a proteção da Previdência Social.
Os atores do mercado informal não desempenham o mesmo papel o tempo todo. Uma parte nasce e vive na informalidade, é verdade (Neri, 2000). Mas, mesmo aí seguem vários scripts, mudando de ocupação, local de trabalho e ramo de atividade. Há os que passaram pelo mercado formal, onde encarnaram vários personagens, seguindo roteiros estruturados. Mas, há também os que ficam anos à fio zigue-zagueando entre os vasos comunicantes do formal e informal.
O mercado informal está registrando um aumento de pessoas com mais qualificação que se distancia cada vez mais do mundo do emprego e se instala no mundo do trabalho, com pouca chance de reversão. São engenheiros, consultores, analistas, professores, personal trainers, etc. que trabalham na condição de "temporários permanentes" (Beck, 2000). Para esse grupo, é ilusório achar que a nova proteção venha a ser feita através da sua incorporação no velho mercado formal.
Estamos diante de um novo mundo no qual a realidade se torna cada vez mais complexa, heterogênea e movediça. Convém meditar até que ponto se sustenta as dicotomias entre formal e informal ou moderno e tradicional. Talvez seja mais conveniente deixá-las de lado, e concentrar esforços na busca de proteção para todos, estejam onde estiverem.
Para tanto, há que se pensar na criação de proteções atreladas aos seres humanos - "proteções portáteis" - e não à condição de trabalho. Isso requer uma arquitetura de regras que permita às pessoas entrarem e reentrarem nos vários nichos do mercado, mantendo um mínimo de proteção.
Como é utópico querer revogar a inflexibilidade da arquitetura atual e desmontar o rosário dos direitos inegociáveis, resta buscar uma re-regulamentação que possa ser usada pelos protagonistas, de forma voluntária.
Fazer o negociado prevalecer sobre o legislado no caso de interesses econômicos é um primeiro passo para se estimular as partes a buscar a proteção daquilo que pode ser protegido, em especial, a Previdência Social.
Feita a opção pelo novo sistema, há que se expor os participantes a estímulos atraentes. Reduzir despesas de contratação é uma boa oferta inicial. Simplificar a subcontratação, vem logo em seguida. Microcrédito, seguros contra infortúnios, capacitação para o trabalho, aconselhamento pessoal e assessoria empresarial, são apoios de igual importância. Diminuir o risco de ações judiciais está no mesmo nível.
O importante é reduzir o custo da legalização e estimular as pessoas a criar pacotes mínimos de proteções, dentro dos quais, a mais central é a Previdência Social.
Essa re-regulamentação é um processo, e não uma obra acabada. Ela exige pontaria, gradualismo, monitoramento, persistência e flexibilidade. Os ciclos da economia podem forçar alguns recuos, mas não a desistência. As experiências de stop-and-go no campo trabalhista não deram bons resultados (Maldonado, 1995; Lora e Pagés, 1997). A perseverança é um remédio melhor (Gregory, 1998; Pastore, 1999).
A simplificidade tem de ser a coluna dorsal das novas instituições do trabalho. O Brasil fez duas experiências para ampliar a formalização: o SIMPLES e a Lei 9.601 (contrato por prazo determinado). Ambos proporcionam às empresas uma economia de aproximadamente 19% nas despesas de contratação formal.
Em três anos, o SIMPLES formalizou quase 3 milhões de postos de trabalho (Cechim e Fernandes, 2000) enquanto que, em dois anos, a Lei 9.601 formalizou 17 mil postos (MTE, 2000). Por que?
A resposta é simples. Porque o SIMPLES é simples e a Lei 9.601 é complicada.
O SIMPLES, além de reduzir despesas, diminuiu substancialmente a infernal burocracia contábil, estimulando os microempresários a registrar seus empregados. No caso da Lei 9.601, para se contratar um empregado legalmente, o dono de uma microempresa tem de chamar o sindicato correspondente; fazer com ele uma negociação; assinar um acordo coletivo; e provar para o fiscal do trabalho que o novo contratado não alterou a média de empregados do quadro de pessoal e a folha salarial que a empresa tinha no segundo semestre de 1997. Nada disso faz parte do repertório dos (microempresários do Brasil. Resultado, não contratam.
O SIMPLES poderia ser ainda mais simples se, mantida a contribuição previdenciária, a lei tivesse aberto a possibilidade das partes negociarem o que é possível negociar.
A tônica da simplificação tem de presidir as mudanças trabalhistas, em especial, para as micro e pequenas empresas e para os grupos mais vulneráveis (menos educados, jovens, mulheres, rurais e pessoas de meia idade).
Entretanto, mudar a legislação trabalhista na direção proposta, envolve mais arte do que técnica, mais política do que economia. O sistema brasileiro de cunhagem de leis tende a ouvir apenas os que estão protegidos pelo sistema atual, deixando de lado os que mais precisam de proteção - os desempregados e os integrantes da informalidade. Por falta de organização, os excluídos são condenados a ficar na exclusão.
Isso é injusto. Cabe ao legislador corrigir essa falha flagrante, dando voz aos que mais precisam ser protegidos, da maneira que for mais viável, e, com isso, partir-se para um sistema de proteção mais justo e que respeite a complexidade crescente do mercado de trabalho.
Bibliografia recomendada
Amadeo, Edward, Valério Pero e Joana Meyer (1996)
"Uma Análise da Qualidade da Ocupação nas Regiões Metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo em 1990", in Pesquisa e Planejamento Econômico, Vol. 26, no. 1, pp. 133-154.
Barros, Ricardo Paes e Rosane Silva Pinto de Mendonça (1995)
Uma Avaliação da Qualidade do Emprego no Brasil, in texto Para Discussão no. 381, Rio de Janeiro: IPEA.
Beck, Ulrich (2000)
The Brave New World of Work, Cambridge (UK): Polity Press.
Cechin, José e Alexandre Z. Fernandes (2000)
"Boletim Informativo GFIP – Avaliação dos Dados", Brasília: MPAS, Ano 1, no. 2, 2000),
Gregory, Mary (1999)
"Reforming the Labour Market: An Assessement of the UK Policies of the Thatcher Era, in Australian Economic Review, vol. 31, no. 4, 1998).
IBGE (1999)
Economia Informal Urbana, Rio de Janeiro: Instituto de Geografia e Estatística.
Infante, Ricardo e Máximo Veja-Centeno (1999)
"La Calidad del Empleo: Lecciones y Tareas", in Ricardo Infante (ed.), La Calidad del Empleo, Santiago: OIT.
Lora, Eduardo e Carmen Pagés (1997)
"La Legislación Laboral em el Proceso de Reformas Estructurales de América Latina e el Caribe", Documento de Trabalho no. 343.
Maldonado, Carlos (1995)
"The Informal Sector: Legalization or Laissez-Faire?", in International Labour Review, Vol. 134, no. 6, pp.705-728.
Mercosul (2000)
"Dois Terços dos Trabalhadores do Bloco não têm Contrato de Trabalho", Montivideu: Fórum de Líderes do Mercosul, 14/07/00.
MTE (2000)
"Dados de Contratação sob a Lei 9.601/98", Brasília: Ministério do Trabalho e do Emprego (www.mte.gov.br).
Neri, Marcelo Côrtes(2000)
"Mercado de Trabalho e Bem Estar Social (1996-99): Diferentes Histórias em Diferentes Cidades", Rio de Janeiro: Fórum Nacional Especial: Soluções para a Questão do Emprego (mimeo).
OIT (1998)
Panorama Laboral 1998 em América Latina e Caribe, Lima: Oficina Regional de la OIT.
Pastore, Jose (1999)
"Tempo, Perseverança e Reformas Institucionais", O Estado de S. Paulo, 23/11/99.
Pinheiro, Vinícios Carvalho e Renata Mello B. Miranda, "O Perfil dos Não Contribuintes da Previdência Social", Informe da Previdência Social, Março 2000.
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