Artigos 

Publicado no site O Valor Econômico, 02/08/2011.

O desafio de voltar ao trabalho após a penitência

A volta ao mercado de trabalho de quem sai da prisão é um desafio tão grande que assusta até o especialista que se dedique a pesquisar o assunto. José Pastore, economista e sociólogo da Universidade de São Paulo, assina livros e artigos sobre o mercado de trabalho, a inserção de deficientes físicos, a questão do emprego doméstico, mas afirma sem pestanejar que o maior desafio de sua carreira foi investigar o retorno do condenado ao convívio social. O índice de reincidência entre presos que tentam voltar ao trabalho chega a 70%.

O resultado da pesquisa, de que Pastore falou ao Valor, chega às livrarias amanhã, no livro "Trabalho Para Ex-Infratores". Segundo o autor, a obra tem um caráter prático, visando estimular as empresas a se abrirem para esse trabalhador que procura meios de se reintegrar a uma vida normal. O último capítulo contém uma lista de 74 sugestões de procedimento para empregadores interessados em colaborar para que esse retorno possa ocorrer.

Valor: Os 70% de reincidência indicam bloqueios insuperáveis?

José Pastore: A sociedade quer que o indivíduo que cometeu um delito seja encarcerado o mais depressa possível e pague sua pena, faça penitência - daí a "penitenciária". Mas, depois que ele fez a penitência, a sociedade não quer mais saber dele.

Valor: Não há absolvição...

Pastore: A sociedade o condena a uma pena perpétua. As pessoas perguntam, quando toco no assunto: "Você daria emprego a uma empregada doméstica que foi presidiária?" Se respondo que não, a réplica é: "Viu"? Fazem logo a pergunta mais difícil. A doméstica é alguém em cujas mãos colocamos nossa família. Há muitas situações de trabalho em que isso não ocorre, porque há supervisão.

Valor: A sociedade não confia em seu próprio sistema de penitência?

Pastore: Em certo sentido, ela tem razão. O sistema prisional amplifica o problema em vez de resolvê-lo. A prisão mais estraga do que conserta. Ofende-se a dignidade humana das pessoas, em último grau. Depois de anos, como eles mesmos acreditariam na possibilidade de recuperação?

Valor: Quais são os problemas de alguém que foi massacrado psiquicamente e quer voltar à sociedade?

Pastore: A maioria sai sem recursos para pegar o ônibus e visitar a família. Vão pedir dinheiro emprestado na rodoviária. E pedem também para o sanduíche, porque saem sem dinheiro até para comer. O atendimento das necessidades imediatas é fundamental. Casa, comida, transporte. Mas a sociedade nega, quer que ele volte o mais rápido possível para a prisão.

Valor: E quanto às empresas?

Pastore: O próximo passo é enfrentar a resistência delas. Está faltando mão de obra, mas quando ficam sabendo que alguém esteve preso, as empresas resistem. Essa resistência varia de setor para setor. Alguns têm ojeriza. Em comércio ou serviços, onde se entra em contato com gente, a resistência é monumental. Quando não se trata de entrar em contato com o cliente, é mais fácil. Construção civil, indústria. E mesmo assim o empresário pensa: "E se ele aprontar de novo?" Outros pensam: "E se meus empregados tiverem medo dele?" E têm mesmo. "E se o chefe o tratar mal?" E trata mesmo. São as resistências do lado da demanda.

Valor: E do lado da oferta?

Pastore: São problemas enormes, como a capacitação. A maioria tem ensino fundamental incompleto. Mas o mais grave são atitudes e condutas. Um terço dos egressos conseguem ser encaixados no mercado de trabalho e ficam. Um terço é encaixado, mas sai. E há os que nem conseguem trabalhar, são desenganados. A retenção é tão difícil quanto a inserção. Todo ano saem 30 mil pessoas com pena cumprida das prisões brasileiras. O que fazer?

Valor: Quantos conseguem vaga em algum lugar?

Pastore: Pouquíssimos. Há alguns resultados aparecendo, ainda em pequena escala, claro, mas promissores. Minas Gerais conseguiu encaixar mil pessoas em 2010. O Espírito Santo dá prêmios para empresas que contratem ex-infratores: mil pessoas foram contratadas. É pouco, mas animador. Antes, nem isso.

Valor: As empresas já deram retorno dos resultados?

Pastore: De modo geral, estão satisfeitas. Há atividades que parecem se encaixar melhor. É importante não só dar trabalho, mas um trabalho que se ajuste ao egresso. As regras também precisam ser explicadas para a companheira dele, que, assim, é cooptada. É preciso explicar ao egresso e sua mulher que na empresa há disciplina.

Valor: A mulher, então, fica de olho nele...

Pastore: A mulher fica de olho nele, o ajuda, dá apoio. O apoio familiar é fundamental. Ela se envolve. O desafio é entender o fenômeno da desistência. Se não der o clique na cabeça, para querer sair do crime, é difícil. O mundo do crime continua ativo enquanto ele está na cadeia e depois que sai. As gangues podem pegá-lo de novo facilmente.

Valor: Como acontece o clique?

Pastore: São vários cliques. Primeiro, ele vislumbra a vida de menos risco. Depois, faz tentativas de sair do crime, aceitar um trabalho. Nessa fase, há muita recaída. Na terceira fase, se arrepende das recaídas e volta ao trabalho. Quando percebe a boa reação da família e dos amigos, se entusiasma e diz: não vou mais para o crime.

Valor: Pode-se acelerar o clique?

Pastore: Há fatores de aceleração. Um é a paixão. É incrível como o amor tem força para resolver um problema complicado como esse. Se o egresso se apaixona, a volta é mais rápida. Ele não quer perder o amor. O mesmo vale para a religião e a família.