Publicado no site O Estado de S. Paulo, 24/11/2009.
Cláusulas sociais: uma nova investida
Os países ricos não se emendam: pregam o liberalismo para os pobres e usam o protecionismo para si mesmo.
Novas leis estão sendo cunhadas nos Estados Unidos e na União Européia com vistas a estabelecer critérios ambientais e trabalhistas para o comércio internacional.
O filme é antigo. Na reunião do GATT, realizada em Marakesh em 1994, a França e os Estados Unidos tentaram vincular as importações ao cumprimento de padrões trabalhistas sob o argumento de que os países que desrespeitam tais padrões praticam um dumping social. Mais tarde, e já no âmbito da Organização Mundial do Comercio (que sucedeu o GATT), os países da Escandinávia, engrossaram esse coro, declarando que seu propósito era o de melhorar a condição de vida dos trabalhadores dos países pobres.
Estes sempre reagiram e rejeitaram tais "ajudas", impedindo que a OMC viesse a adotar normas trabalhistas como critério para as compras internacionais.
Em 1996, na reunião de Cingapura, a OMC reconheceu a OIT como o organismo mais competente para tratar das questões trabalhistas. A partir de então, a OIT passou a pesquisar as dimensões sociais do processo de globalização, apresentando, em 2004, um excelente relatório sem, contudo, recomendar a utilização de normas trabalhistas como condições para o comércio mundial.
De lá para cá os dois organismos têm realizado vários estudos sobre comércio, emprego e normas trabalhistas. Em nenhum deles se propõe o uso de critérios trabalhistas para orientar as importações ou exportações dos estados membros.
A resistência a esse tipo de expediente não é xenofobismo. Há inúmeros problemas de ordem prática que, se não resolvidos, dariam aos países importadores uma força colossal para bloquear as exportações dos países mais pobres. Um deles diz respeito à própria definição das normas mínimas. Outro se refere à autoridade que iria implementar tais normas. Há ainda a questão de se saber que tipo de sanção seria aplicada nos casos de eventuais violações dessas normas. São problemas complexos.
É claro que todos os países querem o melhor para seus trabalhadores. Mas, em decorrência de uma decisão arbitrária de não importar, os países mais ricos podem condenar a economia dos países mais pobres à estagnação, agravando ainda mais as condições dos trabalhadores que eles dizem defender.
O discurso humanitário, e fundado na retórica dos direitos fundamentais da pessoa humana, é munição para dar aos países mais ricos motivos adicionais para impedir a entrada de bens e serviços de fora para não prejudicar as empresas e os empregos de dentro.
Numa hora em que os Estados Unidos e a União Européia passam por uma severa crise de empregos (que não tem nada a ver com os países mais pobres), não surpreende as iniciativas de parlamentares, governos, associações empresariais e organizações sindicais - para criar todos os tipos de barreiras para impedir as importações. O que eles não conseguiram na OMC em termos mundiais, estão tentando estabelecer em bases nacionais.
Precisamos estar muito atentos para não cair em mais um canto da sereia. O Brasil tem feito um esforço bem sucedido de reduzir o trabalho infantil. Desde a implantação da Bolsa Escola (1994), os avanços têm sido expressivos. A parcela de crianças e adolescentes que têm menos de 16 anos e que trabalha e não estuda é mínima, e vem caindo a cada ano.
O mesmo ocorre com o trabalho escravo, sendo que, neste caso, o que ainda persiste é devido, em grande parte, à elasticidade do conceito utilizado. Convenhamos. A escravidão propriamente dita está fora do mapa do Brasil há mais de cem anos.
Apesar desses avanços, nosso país não está livre dos efeitos deletérios para o emprego e a renda dos trabalhadores caso esses países decidam aprovar essas cláusulas sociais (trabalhistas e ambientais). Nessa hipótese, a FIESP estima que o Brasil perderia mais de 15% de suas exportações para os Estados Unidos e, talvez, um percentual ainda maior para a União Européia.
É claro que esse tipo de imposição será fortemente questionada no âmbito da OMC. Afinal, aquele organismo nunca aprovou o atrelamento do comércio internacional a normas trabalhistas ou ambientais.
É irônico. No campo ambiental, quem mais resiste a adoção de metas de descarbonização do Planeta são os Estados Unidos. É o mundo do faço o que eu digo, mas não faça o que eu faço. |