Pulicado na Folha de São Paulo, 22/12/1985
Um pacote que atropelou as negociações do pacto
A aprovação do pacote tributário, sob pressão e, ao apagar das luzes de 1985, foi um dos eventos mais dramáticos da primeira legislatura da nova República. De um lado, o conjunto de medidas encerrou tamanha complexidade que a nenhum parlamentar foi dada a certeza de pleno entendimento de todas as suas conseqüências. De outro, o pacote apresentou uma grave assimetria, ou seja, determinou sacrifícios claros para quase toda a sociedade enquanto que prometeu mera disposição de conter gastos por parte do governo.
Aprovado o pacote, sobrou, assim, o entre-choque desconfortável entre a determinação e a promessa. Do lado da sociedade, está selado, sem sombra de dúvida, que as grandes empresas e os profissionais de maiores salários contribuirão com uma espantosa soma de 60 trilhões de cruzeiros adicionais na forma de impostos. Está assentado também que os credores de restituição do imposto de renda em 1986 só receberão o que pagarem a mais no final de 1989.
Para os trabalhadores de menores salários concedeu-se, é verdade, uma redução do imposto na fonte, o que poderá gerar, eventualmente, um aumento da renda mensal ao longo de 1986. Convém lembrar, porém, que os reajustes salariais passaram a ser atrelados ao IPCA que, dentre outras coisas, reduz o peso do item alimentação de 46% para 32% nas vésperas de um ano de escassez de comida. Isto tem severos reflexos para os trabalhadores de renda mais baixa para os quais a alimentação consome a maior parte de seu salário. Tudo indica, pois, que o "alívio" de imposto será engolido pela inflação acelerada que já se pronuncia de modo firme em decorrência não só da alta de preços dos alimentos como também do realismo tarifário dos serviços públicos (especialmente eletricidade e petróleo), da contínua pressão salarial e dos efeitos do próprio pacote.
Por isso tudo, o pacote tributário e o próprio prosseguimento da inflação, determinaram para os empresários, profissionais de classe média e trabalhadores em geral sacrifícios certos vis-a-vis a uma promessa incerta do lado do governo. Promessa, aliás, bem incerta quando se considera que o governo se prepara para mais um teste de urna que, por tradição no Brasil, é sempre um grande arrombador dos orçamentos governamentais. Até aqui, a palavra cortes tem sido usada simplesmente para reduções de orçamentos futuros – em geral inflados como técnica de negociação pública – ou para alguns leilões de opalas que, provavelmente, serão recomprados ao longo da campanha eleitoral de 1986.
Com isto, o governo conseguiu a grande proeza de fazer um pacto social às avessas, invertendo todas as suas intenções iniciais que, como queria Tancredo, previam conversas diretas entre trabalhadores, empresários e o próprio governo. Ao optar pela metodologia dos pacotes, a Nova República preferiu decidir por si mesma, isoladamente, mas descarregando todo o sacrifício sobre as outras duas partes.
Consumado o fato, instalada a dúvida entre os agentes econômicos diante de um pacote indecifrável nos seus efeitos e, disparada a inflação para 14% em dezembro, o ministro Dílson Funaro vem, agora, reafirmar a vontade do pacto, prevenindo que a meta prometida de 160% de inflação para 1986 só poderá ser conseguida sob a condição de um claro entendimento entre as três partes: trabalhadores, empresários e governo. Para quem pretende se utilizar da abordagem do pacto social, tal procedimento não poderia ter sido mais estranho. Ou seja, o governo primeiro "faz as suas" e depois pede a colaboração das outras partes. Afinal, esperteza tem seus limites.
Há alguns meses, quando o presidente Sarney reafirmou seu desejo de levar avante o pacto social, Ulysses Guimarães dizia ser tarde demais repetindo que a hora do pacto havia passado. Com a aprovação solitária do pacote tributário – que sequer deu condições de análise aos próprios parlamentares, sem dizer que trabalhadores e empresários só tomaram conhecimento da "maldade" pela imprensa – o governo da Nova República parece que veio dar razão definitiva a Ulysses e frustração irreparável a Tancredo: o pacto derreteu... foi atropelado por um pacote.
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