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Publicado em O Estado de S. Paulo, 22/02/2005.

A França e as 35 horas

Por decisão da Câmara dos Deputados, a França decidiu abandonar a rigidez da jornada de trabalho de 35 horas semanais. Pelo projeto aprovado, a jornada pode se estender até 48 horas, pagando-se hora extra (ou concedendo dias de férias) para o que exceder as 35 horas.

O Código do Trabalho da França estabelece que o valor da hora extra é matéria de livre negociação, mas não pode ser inferior a 10% do valor da hora normal. Na ausência de acordo e contrato, o valor das primeiras 8 horas extras é de 25%. Depois disso, sobe para 50%. A maioria das empresas negocia e acerta valores acima de 10%.

O propósito básico da lei das 35 horas, aprovada em 1997, era o de gerar mais empregos. A lei concedeu aos empregados e empregadores um período de dois anos para adaptação mas, desde a sua aprovação, o governo concedeu incentivos para as empresas aderirem espontaneamente à nova jornada, mediante redução de encargos sociais.

Naquele período, as empresas renegociaram com os sindicatos inúmeras mudanças no contrato de trabalho, encurtando intervalos de descanso, modificando turnos, intensificando o tempo parcial, trabalhando aos sábados e várias outras medidas que buscaram elevar a produtividade do trabalho de modo a compensar o aumento de custo da hora trabalhada. Algumas conseguiram, outras não.

Apesar de todos os incentivos e re-arranjos do sistema de produção, a lei foi impotente para gerar os empregos pretendidos. Em um primeiro estágio (1997-2001), o desemprego baixou de 12% para 8,7% mas isso foi devido a um intenso surto de crescimento econômico. A partir de 2002, o crescimento arrefeceu, a jornada continuou reduzida e o desemprego subiu, tendo chegado a 10% em janeiro de 2005.

A França passou a sofrer do grave problema de falta de trabalho, apesar de ter uma grande oferta de trabalhadores dispostos a trabalhar. A redução da jornada sem redução da remuneração aumentou o salário-hora em mais de 11%. A maioria das empresas não conseguiu compensar esse acréscimo de custo com aumentos de produtividade. Dados da EUROSTAT (Agência de Estatísticas da União Européia) mostram que, entre 2001 e 2003, a produtividade per capita na França caiu 4,9% enquanto a da Inglaterra subiu 5% e a dos Estados Unidos, 6%. A competitividade foi abalada. Isso se agravou com a entrada dos dez novos estados membros na União Européia em maio de 2004 (Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Polônia, Eslováquia, Eslovênia, República Checa, Malta e Chipre). Só como exemplo, a média do salário industrial da Lituânia e da Letônia é de 1,41 euros por hora, enquanto que na França é de 16 euros, lembrando que a maioria dos dez novos integrantes da União Européia Possi uma população bem educada e produtiva.

Em suma, a lei das 35 horas mostrou-se disfuncional para gerar empregos. Os próprios empregados já estavam reclamando. Os trabalhadores da produção passaram a ser mais exigidos, o stress aumentou e o descanso diminuiu. No final de 2002 eles estavam trabalhando mais e ganhando menos. Sentiram-se abandonados pela esquerda. Reagiram. E votaram contra Lionel Jospin - "o pai das 35 horas".

Isso explica, em grande parte, o sucesso do Primeiro Ministro Jean-Pierre Raffarin em mobilizar os deputados para votar a flexibilização recém aprovada. Os protestos dos sindicatos e as passeatas de rua não afetaram os parlamentares. Eles sabiam que a população estava dividida e insatisfeita com uma jornada que fez aumentar o desemprego.

Com a mudança aprovada, os empregadores preferirão utilizar seu próprio pessoal em tempos de demandas incertas. Na medida em que as demandas se mostrarem firmes e contínuas, eles contratarão novos empregados e a taxa de desemprego cairá.

Poucos são os países que adotaram a estratégia de reduzir jornada de trabalho por lei. A França fez isso duas vezes (1982 e 1997), sem sucesso. O Brasil também reduziu a jornada semanal de 48 para 44 horas via mudança constitucional em 1988, e o desemprego saltou de 5% em 1989 para 11% em 2004 (média).

Por isso, convém pensar bem antes de se partir para uma nova mudança constitucional que venha a reduzir ainda mais a jornada de trabalho sem redução de salários. O melhor é deixar essa matéria para negociação, como faz a maioria dos países do mundo, inclusive o Brasil.