Artigos 

Apresentado no Encontro com Magistrados, Instituto Brasileiro de Ciência Bancária, Foz do Iguaçu, 14/11/2004

O Atrito entre a lei e a realidade

(A Urgência de uma Reforma Trabalhista)

José Pastore

É fato sabido existir um enorme abismo entre a lei e a realidade no campo do trabalho. Embora o Brasil possua uma das legislações mais protecionistas do mundo, apenas 40% dos brasileiros que trabalham desfrutam das proteções mínimas. Ou seja, 60% vivem na informalidade, sem nenhuma proteção e causando um grande rombo nas contas da Previdência Social.

A Constituição Federal e a CLT estabelecem um grande conjunto de direitos a serem respeitados por todas as empresas para a contratação legal de seus empregados. Ocorre que nenhum desses direitos é negociável entre empregados e empregadores. Mesmo que estes desejam, a lei não permite negociá-los. Esse conjunto de direitos, obviamente, gera um conjunto de deveres que, por sua vez, se traduzem em despesas de contratação que chegam a 103,46% do salário conforme mostra a tabela exibida a seguir.

Isso se aplica a todas as empresas independentemente de seu porte. Portanto, uma micro-empresa de 4 empregados tem as mesmas despesas de contratação que tem uma mega-empresa montadora de automóveis ou fabricante de aviões. Isso se aplica também a todas as regiões e todos os setores da economia.

Além das despesas indicadas, os direitos legais geram uma série de procedimentos administrativos e uma pesada burocracia para preencher dezenas de guias de recolhimento e para fazer cálculos complexos. Qualquer afastamento desses procedimentos dispara uma ação trabalhista. O Brasil é o campeão mundial de ações trabalhistas: entre nós, surgem quase 2 milhões por ano, enquanto que na França são cerca de 70 mil, nos Estados Unidos, 75 mil e no Japão - incrível! - são apenas 2.500 ações por ano.

O grande volume de ações encarece indiretamente as empresas e a sociedade como um todo. Sabe-se que, para julgar R$ 1.000,00 a Justiça do Trabalho gasta cerca de R$ 1.300,00, levando-se em conta apenas o seu orçamento relativo às despesas correntes e deixando-se de computar os investimentos realizados nos tribunais do trabalho e as despesas das partes para sustentar as ações perante os juizes. Isso não é culpa dos juizes, mas sim da legislação super detalhista e tamanho único que impera no Brasil. Além disso, há um grande desperdício de talentos quando se sabe que juizes bem preparados têm de julgar todos os dias as mesmas questões - salários não pagos, 13º. pendente, horas extras não remuneradas e outras reclamações rotineiras.

Despesas de Contratação no Brasil

(Horistas)

Tipos de Despesas

% sobre o Salário

Grupo A -Obrigações Sociais

 

Previdência Social

20,00

FGTS

8,50

Salário Educação

2,50

Acidentes do Trabalho (média)

2,00

SESI/SESC/SEST

1,50

SENAI/SENAC/SENAT

1,00

SEBRAE

0,60

INCRA

0,20

Subtotal A

36,30

Grupo B -Tempo não Trabalhado I

Repouso Semanal

18,91

Férias

9,45

Abono de Férias

3,64

Feriados

4,36

Aviso Prévio

1,32

Auxílio Enfermidade

0,55

Subtotal B

38,23

Grupo C -Tempo não Trabalhado II

13º Salário

10,91

Despesa de Rescisão Contratual

3,21

Subtotal C

14,12

Grupo D -Incidências Cumulativas

 

Incidência Cumulativa Grupo A/Grupo B

13,88

Incidência do FGTS s/13º sal.

0,93

Subtotal D

14,81

TOTAL GERAL

103,46

Fonte: Itens da Constituição Federal e CLT.

A tabela acima mostra que uma empresa que contrata trabalhadores horistas por R$ 1.000 por mês têm uma despesa de R$ 2.030. Muitos argumentam que parte dessas despesas vai para o bolso dos trabalhadores e não devem ser consideradas como encargos sociais.

É verdade. Ainda assim, são despesas com as quais as empresas têm de arcar. Nenhuma delas pode ser ignorada ou negociada. São todas compulsórias. Que são despesas são mesmo! Não há o que discutir.

Será que a maioria das empresas agüenta arcar com essas despesas e desincumbir-se da carga de burocracia por elas geradas? Qual é a realidade das empresas no Brasil?

Os dados da RAIS de 2001 mostram que há no Brasil 5.574.779 empresas registradas. Destas, 5.277.308 são micro-empresas. Ou seja, o Brasil é um país das "formiguinhas" em matéria de empresas.

Essa é a nossa realidade: cerca de 95% das empresas existentes são micro-empresas. A grande maioria é composta de empresas de faturamento baixo e incerto. Raramente são exportadoras. Mais raramente ainda produzem para grupos de alta renda. Elas se concentram no pequeno comércio, pequenos serviços e pequenas indústrias. Como tal, não têm condições de seguir a atual legislação trabalhista e não podem negociar nada diferente com seus empregados.

Esta é uma primeira restrição para a aplicação de uma legislação pesada em termos econômicos e administrativos. O Brasil tem de encarar que a realidade das empresas é extremamente diversificada, com uma grande concentração em empresas fracas. Um aperto exagerado por parte da fiscalização pode quebrá-las por completo, passando os trabalhadores da informalidade para o desemprego.

Como se distribuem os empregados pelos diferentes portes de empresa? Segundo os dados do Cadastro Geral de Empresas (IBGE, 2002), das 4.964.885 empresas registradas (que têm CNPJ), 4.124.994, ou seja, cerca de 83% empregam de 0 a 4 trabalhadores. Ou seja, a esmagadora maioria de empresas emprega poucos empregados por unidade e são elas que têm a maior dificuldade para arcar com as despesas e a burocracia das atuais leis trabalhistas. No conjunto, essas empresas empregam cerca de 50% da força de trabalho do Brasil.

Examinando a questão de um outro ângulo, verifica-se que cerca de 2,8 milhões de empresas registradas não têm nenhum empregado. Dentre as que possuem empregados, estão cerca de 1,8 milhões de empresas.

Como se distribuem essas empresas de acordo com seu tamanho? Novamente, os dados mostram que das 1.769.517 que possuem empregados, 1.235.742 têm de 1 a 4 empregados registrados (BNDES, 2002).

Portanto, continua o mesmo padrão: cerca de 70% das empresas registradas não empregam mais de 4 pessoas. Os mesmos dados revelam que 391.241 empresas empregam de 5 a 19 empregados. Estes dois grupos congregam cerca de 92% das empresas registradas no Brasil.

É nessas pequenas unidades produtivas que mais incide a informalidade. No caso das micro e pequenas empresas, a informalidade sobe para 74%. No caso das micro e pequenas empresas do comércio e serviços, a média chega a 84%. Os dois casos são bem superiores à média nacional que já é absurdamente alta: 60%.

Portanto, quem convive com a informalidade são as empresas de pequeno porte. Quem mais sofre a desproteção são os brasileiros que nelas trabalham. É aí que a lei mais atrita com a realidade.

Em termos gerais, o Brasil possui 8,5 milhões de pessoas desempregadas e 79,3 milhões trabalhando. Destas apenas 31,7 milhões (40%) estão na formalidade. Os restantes 47,5 milhões estão na informalidade (60%). É um número colossal. É maior do que muitas populações de países da América Latina e da Europa.

Em suma, nesse mundo das micro e pequenas empresas a desproteção é brutal e decorre em grande parte do irrealismo da legislação em face do quadro exibido.

Muitos argumentam que o crescimento econômico resolve esse problema. Ledo engano. O crescimento é necessário, mas não suficiente. A informalidade tem crescido na recessão e na retomada da economia. De julho de 2003 a julho de 2004, quando a economia brasileira apresentou sinais firmes de recuperação, o mercado de trabalho formal cresceu apenas 2,4% enquanto que o informal cresceu 9,6%. Em 2002, em relação à PEA, havia três postos de trabalho informais para cada um formal.

Quem são os trabalhadores informais? Dos 47,5 milhões de trabalhadores informais, 19,2 milhões (40,3%) são empregados que deveram ter sua carteira registrada, mas não têm porque a grande maioria trabalha em empresas de pequeno porte que não dispõem de condições de fazê-lo. Cerca de 17,2 milhões são trabalhadores por conta própria cujo vínculo com a informalidade depende de um regime previdenciário especial sobre o qual muito se fala, mas que até o momento não existe. Cerca de 4,3 milhões são empregados domésticos não registrados que, devido às peculiaridades de muitos lares, não conseguiram formalizar seu trabalho. Aproximadamente 5,7 milhões são pessoas que trabalham sem remuneração, a maioria na zona rural, ajudando parentes na lavoura familiar ou comercial. E 1,1 milhão são empregadores informais.

Como se vê, cada segmento exige uma adequação da legislação atual, tanto trabalhista como previdenciária. O que não se pode é continuar com uma lei "tamanho único" para realidades tão diferentes. O Brasil precisa diferenciar a sua legislação no campo do trabalho de modo a torná-la realista e ajustada à realidade. Sobretudo, o país precisa desenvolver proteções que sejam atreladas às pessoas e não aos postos de trabalho. Sim porque os trabalhadores fazem um verdadeiro zigue-zague ao longo de suas carreiras, trabalhando algum tempo no mercado informal, outro tempo no mercado formal e, com freqüência, voltando várias vezes para o mercado informal, especialmente quando o desemprego aperta. Pela lei atual ele tem proteções apenas no mercado formal, em particular, como empregado formal. Quando deixa de ser empregado formal e adentra o mundo do trabalho (e não do emprego) ele perde as proteções, o que não é admissível em uma sociedade que pretende tratar todos os cidadãos de maneira igual e digna.

A criação de um "simples trabalhista" poderá ajudar a formalizar muitos trabalhadores. As empresas são sensíveis a simplificações. A criação do Simples Tributário em 1996 fez com que, nos primeiros três anos, as empresas formalizassem cerca de 3 milhões de empregados que trabalhavam em situação irregular. O programa reduziu despesas, simplificou a burocracia e estimulou o registro. Por isso, a extensão desse programa para a área trabalhista poderá ajudar a resolver o grave problema da informalidade que, como vimos, incide fundamentalmente nas micro e pequenas empresas que são 95% das empresas do Brasil.

Para os trabalhadores por conta própria, a criação de um regime previdenciário especial, como vem sendo prometido pelo Governo Lula ("super simples") poderá ajudar a formalizar os que não são empregados, mas precisa estabelecer um vínculo previdenciário.

Os dados acima mostram que a fricção existente entre a lei e a realidade decorre da natureza do mercado de trabalho do Brasil. Trata-se de um mercado de grandes proporções e concentrado em micro, pequenas e médias empresas.