Publicado na Folha de S. Paulo, 11/04/1988
Como perder o medo da livre negociação?
José Pastore e Hélio Zylberstajn
Decidida a eliminação da URP para os servidores federais por dois meses e agora com a perspectiva de uma inflação de 21% para abril, é quase certo que o governo venha a considerar mudanças na política salarial também para o setor privado.
Começará, assim, mais uma onda de "formuletas" para se encontrar a política salarial mais condizente com os propósitos de estabilização econômica do país. O Brasil deve ser o campeão de tais formuletas. De 1979 até hoje foram tentadas nove fórmulas pré-fabricadas para uma suposta administração de salários pela via de leis e decretos-leis. Nenhuma delas deu certo. O cobertor sempre foi curto. Ora protegia apenas os pés (os salários mais baixos), ora a cabeça.
O cardápio de fórmulas foi variadíssimo. O Brasil deve ter tentado de tudo em matéria de política salarial pré-indexada. Nenhum dos sistemas durou mais de 18 meses. A maioria não durou um ano. Muitos não completaram seis meses.
No processo de formulação daquelas políticas, sempre rondou a idéia da livre negociação. São poucos os que negam as virtudes desse sistema natural de mercado para ajustar o preço do trabalho (salário). Mas são poucos também os que teriam a coragem de partir para esse sistema, no Brasil. Na recessão, o argumento é que não se pode implantar a livre negociação quando os trabalhadores estão fracos e quase sem poder de barganha. Na inflação alta – como agora – o argumento é que os sindicatos mais fracos seriam massacrados por não terem poder para recompor as grandes perdas decorrentes do processo inflacionário.
Como contornar esses casos? Como contornar especialmente o caso atual, ou seja, como implantar a livre negociação com uma inflação de 600% ao ano?
O sistema aqui proposto visa exatamente isso. Os autores defendem que a implantação da livre negociação é urgente e viável, desde que empresários, trabalhadores, governo e representantes da Justiça do Trabalho cheguem a um acordo sobre os seguintes pontos.
1. Com inflação de 600% e uma rede sindical predominantemente fraca, é impossível implantar a livre negociação de modo abrupto. Entretanto, ela poderá ser implantada gradualmente, digamos, num prazo de cinco anos.
2. Nesse período, o sistema funcionaria da seguinte maneira: no primeiro ano, os trabalhadores teriam a reposição mensal automática de 90% da inflação passada e, semestralmente, negociariam adicionais acima desse mínimo. No segundo ano, a parcela de reposição automática desceria para 80%, ficando o restante para a negociação. No terceiro ano, a parcela automática seria de 70%, no quarto ano de 60% e no quinto ano apenas 50%. Daí para a frente, nas respectivas datas-base, as partes negociariam livremente.
3. Na negociação da parcela adicional, as partes, desde o primeiro ano, ficariam com total liberdade de implantarem sistemas de cascata, periodicidade e percentuais variados. A partir do sexto ano, elas poderiam estabelecer nos seus acordos e convenções suas próprias fórmulas de e ajuste automático, assim como os períodos que julgassem mais adequados, etc.
Com tal sistemática, contornaríamos o problema da aludida fragilidade sindical. Os sindicatos teriam cinco anos para praticarem a negociação de modo gradual e pedagógico.
Resta, porém, saber como procederia a Justiça do Trabalho na resolução de impasses sobre os adicionais. Esta é a razão pela qual os representantes da Justiça do Trabalho deveriam participar da negociação inicial junto com os trabalhadores, empresários e o governo. Poder-se-ia propor que a Justiça do Trabalho viesse a adotar apenas para as questões salariais, o método da oferta final, ou também chamado da melhor oferta. Tal método funciona da seguinte maneira: esgotada a fase de negociação, o juiz recebe um relatório sobre a evolução das propostas e contrapropostas, incluindo as respectivas ofertas finais e com base nisso, escolhe uma delas. Ou seja, ele não poderá combiná-las, tirar médias ou buscar soluções salomônicas. Ao contrário, se os trabalhadores pediram 138% de aumento (90% que já tinham mais 48%) e os empregadores propuseram 92% (90% que já deram mais 2%), o juiz escolherá 92 ou 138.
Isso tem a vantagem de introduzir um elemento de incerteza na arbitragem da Justiça do Trabalho. Como decisão é uma das ofertas finais, e como não há critérios pré-estabelecidos de decisão (a não ser o próprio comportamento das partes na negociação), este método tem a capacidade de induzir mais negociação e mais convergência nas ofertas finais. Uma solução negociada parecerá mais segura do que uma decisão arbitral, para ambas as partes. Elas proporão ofertas finais mais razoáveis, sob pena de perderem tudo. No exemplo acima, o juiz tenderá a optar pelo 92, que estão mais próximos da inflação observada (100) do que os 138. No próximo ano, aqueles que ficaram nos 138 terão aprendido que ofertas finais exageradas são ineficientes.
Para que o modelo aqui proposto dê certo, é preciso que a magistratura se convença de que sua missão será a de premiar a conduta negocial e penalizar a conduta radical, de ambas as partes. Por exemplo, poderia ser também levada em conta pelo juiz a flexibilidade das partes durante a negociação. Posições iniciais irredutíveis não teriam sua simpatia, enquanto que avanços nas contrapropostas seriam bem vistas. Ou seja, o juiz decidiria, baseado no realismo das propostas sobre a mesa e na conduta das partes. Isso faria as próprias partes basearem suas ofertas na realidade do mercado.
Chegando-se a esse tipo de acordo inicial, o Poder Executivo mandaria a proposta ao Congresso Nacional para que tudo isso fosse transformado em lei válida pelo prazo de cinco anos. Dessa forma, poderíamos ter uma passagem gradual do sistema trabalhista atual para a livre negociação. Durante a transição, nos casos de impasse, as partes aprenderiam a se libertar da proteção excessiva e viciosa do sistema atual, sem o perigo de cair num outro tipo de dependência (da Justiça do Trabalho). Para que funcione, porém, é preciso que a Justiça do Trabalho se integre ao esforço das três partes e adote o modelo de ofertas finais. Com isso não estaríamos eliminando o conflito, mas daríamos às partes a capacidade de elas mesmas administrarem suas diferenças e negociarem as melhores soluções. Teríamos, certamente, dado um passo para perder o medo da livre negociação.
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