Publicado na Folha de S. Paulo, 30/12/1988
O deságio trabalhista nas empresas estatais
José Pastore e Hélio Zylberstajn
Fala-se muito na privatização de empresas estatais, mas pouco sobre como isso será feito. Quanto vale uma estatal? Qual é o seu passivo? Sua força de trabalho é um trunfo ou um ônus?
Para o comprador, obviamente, o negócio só interessa se o saldo líquido entre receitas e despesas for positivo dentro de um prazo razoável. Na avaliação das receitas, ele entenderá que não comprará o eventual direito de monopólio da empresa. A privatização visa exatamente aumentar a concorrência como forma de alcançar maior eficiência. Espera-se, assim, que o comprador esteja preparado para enfrentar a competição nos mercados de produtos e de fatores, inclusive, de mão-de-obra.
Na avaliação das despesas, o comprador considerará algumas especificidades. Dentre elas, a mais importante é o alto custo de sua mão-de-obra. As empresas estatais, via de regra, pagam salários maiores e concedem benefícios indiretos desconhecidos no setor privado, tais como: adiantamento de um salário por ocasião do gozo das férias; licença-prêmio de 30 dias a cada cinco anos; transformação do adicional de quiquênio em anuênio com efeito retroativo (acordo coletivo do Serpro, janeiro de 1987); incorporação ao salário de adicionais pagos com habitualidade (acordo coletivo da Celpe, outubro de 1986); incorporação ao salário de gratificação de função comissionada para os que a perdem desde que exercida por cinco anos (acordo coletivo da Cosern, outubro de 1986); perdão de empréstimos concedidos pela própria empresa (acordo coletivo da Acesita, novembro de 1986).
Estes são apenas alguns exemplos de benefícios freqüentes no setor estatal. Há muitos outros, que tratam de extensões de licenças, salário-família a dependentes com mais de 14 anos, salário-educação, planos de assistência médica e odontológica completos, etc. Além disso, muitas empresas estatais mantêm as fundações de seguridade de aposentadoria complementar.
O comprador de uma empresa estatal levará tudo isso em conta antes de efetuar o negócio. Se a empresa pode operar com altos custos trabalhistas porque é estatal e monopolista, uma vez privatizada, tais custos deverão se adaptar ao mundo da concorrência. O comprador procurará visualizar como ficaria a empresa caso esta viesse a reformular suas políticas trabalhistas. Mas ficará surpreso ao descobrir que muitos dos benefícios existentes são irremovíveis por estarem assegurados em leis específicas, portarias ministeriais e acordos ou convenções coletivas que se repetem e se ampliam a cada ano.
Talvez o comprador venha a sonhar ainda com a idéia de despedir grande parte dos empregados da empresa a ser comprada, mas ficará igualmente surpreso ao se deparar com um sindicato forte e protegido por concessões também sem paralelo no setor privado tais como: participação de dirigentes sindicais em diretorias paritárias (acordo coletivo da Energipe, fevereiro de 1986); presença de empregados e dirigentes sindicais em distribuição de lucros, metas de produção, programas sociais (alimentação, transporte e medicamentos), e planos de cargos e salários (acordo coletivo ELETROBRÁS, janeiro de 1987); franquia ao sindicato para utilizar os malotes e demais meios de comunicações da empresa para seus contatos com todos os Estados do país (acordo coletivo da CER, fevereiro de 1987). Esse mesmo sindicato fortalecido poderá levantar resistências significativas contra a privatização, deflagrando boicotes e greves prolongados.
Se, mesmo depois de todas essas avaliações, o comprador continuar interessado, ele, provavelmente, desejaria um desconto apreciável para compensar os encargos trabalhistas-sindicais apontados. É muito difícil estimar o valor desse desconto. Uma das maneiras é comparar a situação trabalhista-sindical da estatal com uma empresa privada semelhante. Qual é o fluxo de renda proporcionado por uma empresa livre desse ônus, 10% maior, 20% maior? Este seria o deságio trabalhista a ser introduzido na avaliação do preço final da estatal.
Como se vê, a discussão dos detalhes da privatização mostram que esse caminho é bem mais complexo do que aparenta ser. Se, de um lado, as empresas estatais possuem uma mão-de-obra altamente qualificada, de outro, elas estão excessivamente onerados pelas concessões indicadas. Esse quadro é de difícil reversão. Por isso, a viabilidade de privatização, provavelmente, só venha a existir depois de uma profunda mudança administrativa do setor estatal a ser alcançada mediante novas leis, portarias, acordos e convenções realistas e que demorarão vários anos para serem aprovados.
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