Publicado na Revista Veja, 17/06/1998
É hora de acordar
José Pastore - Eliana Simonetti
As taxas de desemprego nos últimos meses, pareciam querer explodir. Segundo a pesquisa oficial, feita pelo IBGE, o índice saltou de 7,25% da população apta para o trabalho, em janeiro, para 8,18% em março. Em abril, o resultado foi um pouco melhor: 7,94%. Pareceu a muitos que, com esse recuo, o pior já tinha passado. José Pastore, professor de economia e administração da Universidade de São Paulo e consultor de empresas, diz que não. Para ele, o Brasil tem dois problemas enormes a resolver. Um é o do desemprego, que ainda vai crescer. O outro é o da má qualidade dos empregos que estão sendo criados no país, em sua maioria trabalhos informais. Pastore, que tem 62 anos e é avô, estuda computação e robótica para entender os efeitos da tecnologia no emprego. É um entusiasta da educação como ferramenta para resolver problemas. "A sociedade precisa dar um jeito de socorrer as pessoas que não são mais úteis, que perdem o emprego porque o que elas sabem não serve mais. Isso é uma tragédia", diz. Ele recebeu VEJA em sua casa para a seguinte entrevista.
VEJA – As pessoas tendem a acreditar que a tecnologia é responsável pela queda do emprego no mundo. Se isso é verdade, qual é a mágica dos Estados Unidos, onde o desemprego não cresce?
Pastore – Há países avançados que usam intensamente a tecnologia e têm desemprego baixo. Outros têm desemprego alto. E todos têm mais ou menos a mesma taxa de crescimento e são similares em termos educacionais. Como se explica isso? Os Estados Unidos usam intensamente a tecnologia e têm 4,5% de desemprego. A Inglaterra usa intensamente a tecnologia e agora já está com 4,5% de desemprego. O padrão é de que quem usa muita tecnologia tenha baixo desemprego. Aí se observa a Alemanha, que usa intensamente a tecnologia e tem 11% de seus trabalhadores desempregados. França, Itália, Bélgica, Espanha têm o mesmo problema. É uma verdadeira caixa-preta esse relacionamento entre tecnologia e emprego. A explicação que está surgindo da pesquisa é a seguinte: quando a tecnologia cai num ambiente com crescimento e educação baixos e legislação trabalhista inflexível, provoca desemprego. Quando a legislação é flexível, os trabalhadores são educados e a economia cresce, o efeito no emprego é desprezível.
VEJA – Não é o caso do Brasil.
Pastore – Não. No caso do Brasil nós temos crescimento baixo, educação ruim e legislação trabalhista inflexível. São três perversidades. A tecnologia aqui tem um impacto forte. Ela desemprega e há grande dificuldade de colocação dos trabalhadores em outra posição. A tecnologia despacha o trabalhador da indústria para o comércio e os serviços, e ele tem de ser reciclado. Com educação baixa a reciclagem é difícil.
VEJA – Que dizer, a gente tem um problemão, não é?
Pastore – Temos problemas muito grandes. Enormes. Problemas que só podem ser resolvidos a médio e longo prazo e problemas que podem ser resolvidos num prazo mais curto. Há fatores de natureza macroeconômica determinando o desemprego. Juros muito altos, problemas no câmbio, crescimento pequeno da economia, constrangimentos tributários, mudanças estruturais e outros problemas que serão de difícil conserto. Além das reformas constitucionais que estão demorando para sair. O Brasil estaria exportando muito mais se exportasse menos tributos. Acontece que nossa legislação tributária faz questão de embutir num sapato uma porção de impostos e lá fora ninguém quer comprar impostos. Até remover isso vai demorar. Educação, outro componente importante para qualificar mão-de-obra para novas tecnologias, também tem solução demorada. A melhor política seria voltar a crescer de 6% a 7% ao ano, mas isso não vai acontecer de uma hora para outra. A única coisa que está em nossas mãos e pode acontecer rapidamente, independentemente da crise asiática, das taxas de juros e do comércio internacional, é a legislação trabalhista. Essa tem de mudar.
VEJA – Mudar como?
Pastore - No mundo moderno a fonte do direito do trabalho está saindo da lei e indo para o contrato. O Brasil está preso na lei. Por exemplo, você pode fazer um acordo coletivo entre empregados e empregadores, que concordam em tudo. Se por acaso fizerem alguma coisa fora do que está na lei, correm o risco de ter o acordo anulado. As partes no Brasil não são tratadas como pessoas de bom senso, adultas, que raciocinam. São tratadas como dependentes, que não podem tomar decisões sozinhas. Acho que deveríamos pensar em reduzir a legislação trabalhista e aumentar a negociação.
VEJA – É, mas em geral os trabalhadores gostam de ser protegidos
Pastore – Nós temos uma cultura do garantismo legal. Acreditamos que, quanto mais direitos estiverem na lei, mais gente estará protegida. O mercado mostra exatamente o contrário. Quanto mais coisas se põem na lei, menos gente está protegida, em 1988 foram acrescentados muitos direitos novos na Constituição. Ela deveria estar protegendo mais gente. Naquela ocasião, a lei protegia 55% dos trabalhadores, que eram os que trabalhavam na economia formal. Hoje protege 43%. Diminuiu o volume de gente protegida, portanto. Vamos supor que a licença à gestante passasse a ter 365 dias, para proteger mais a mulher. O resultado de uma modificação dessas seria o oposto do que se pretendeu. A mulher nunca mais arranjaria emprego formal. Quer dizer, excesso de proteção gera discriminação. Esculpir um novo modelo trabalhista no Brasil significa romper resistências culturais. Quando as pessoas tiverem de escolher entre o direito e o emprego, a mudança poderá acontecer mais rapidamente.
VEJA – Por que a reforma da legislação é tão urgente?
Pastore – O Brasil precisa acordar, precisa estar preparado para as mudanças que estão ocorrendo no mundo. Hoje as empresas de um país podem buscar empregados em outro país. As fronteiras estão desaparecendo nesse terreno do emprego. Hoje a oferta de trabalho está se globalizando. Assim como muitas empresas compram componentes onde eles estejam sendo oferecidos a preço mais baixo, logo estarão arregimentando calculistas, projetistas, desenhistas no lugar em que esses profissionais estejam aceitando pagamento menor por seu serviço.
VEJA – Se alguma empresa quiser contratar um brasileiro dessa forma, consegue?
Pastore – Não sei como. Vai enfrentar dificuldades diante da legislação.
VEJA – Há muita diferença entre países com leis flexíveis e o Brasil?
Pastore – É um contraste enorme. O Brasil está com dificuldade de criar trabalho em quantidade e qualidade para atender a população. Entre 1990 e 1994, o Brasil estava gerando cerca de 360.000 postos de trabalho formais por ano. De 1994 a 1997 esse número caiu. Foram criados cerca de 300.000 empregos formais por ano. Esse é o volume de empregos criados nos Estados Unidos num único mês! Hoje os Estados Unidos são uma verdadeira usina de empregos. O desemprego lá está em 4,5%, que é uma taxa irrisória. Melhor que isso, no ano passado o salário médio real do trabalhador americano cresceu 3,9%.
VEJA – Onde estão as possibilidades de emprego no Brasil?
Pastore – O Brasil tem muito o que fazer. Os estudos do Banco Mundial mostram que, quando a infra-estrutura cresce 1%, o PIB do país cresce 1%. É uma taxa de retorno fantástica. E, dependendo do país, para cada 1% de crescimento do PIB o emprego cresce entre 0,4% e 0,5%. O que é um impacto extraordinário. As deficiências que o Brasil tem no campo da infra-estrutura são enormes. O país tem carência de 12 milhões de moradias adequadas. No Rio de Janeiro, a população cresceu 1,3% nos últimos quatro anos e a população favelada, 69%. No país, metade das casas rurais não tem energia elétrica e tratamento de esgoto. Nós, que nos gabamos de possuir tantas rodovias pavimentadas, temos 150.000 quilômetros de estradas asfaltadas. O Japão, que é minúsculo, tem cinco vezes mais e os Estados Unidos, 33 vezes mais. O Brasil tem um potencial de desenvolvimento e de geração de emprego fantástico porque é um país a ser construído. É diferente da Áustria da Bélgica, da Suíça, que já têm infra-estrutura mais ou menos arrumada. Conclusão: como o investimento em infra-estrutura resulta em criação maciça de empregos, o Brasil deve aplicar tudo o que puder na construção de estradas, ferrovias, casas populares, esgoto, equipamentos de telecomunicações e outras coisas do mesmo tipo.
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