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Publicado em O Estado de S. Paulo, 03/12/2002.

Puxão de orelha nos sindicalistas

"Aviso que, para vocês, dirigentes sindicais, vai acabar a moleza de trabalharem só na data-base e ficar o resto do ano sem fazer nada. Vocês vão ter de deixar de lado a luta fraticida entre centrais sindicais em torno de coisas secundárias como é o caso da contribuição sindical. Vocês precisam entender o tamanho do 'pepino' que recebemos. Nesta sala, com mais de 500 dirigentes sindicais, não há um trabalhador excluído, aquele que não tem trabalho e nenhuma proteção. Os excluídos é que devem ser a nossa prioridade. Chega de fazer protestos na portaria da Volkswagen e da General Motors. Vou chamar vocês para negociar com as outras forças políticas para, juntos, fazermos as reformas da Previdência Social e a tributária. De vocês, espero menos bravata e mais competência".

Foi mais ou menos nesses termos que o presidente eleito encaminhou sua fala no dia 26 de novembro de 2002, ao reunir-se com uma ampla gama de sindicalistas que pretendiam começar a discutir a reforma da organização sindical no Brasil.

O que levou Lula a dar esse puxão de orelha nos dirigentes sindicais?

A relação entre partido e sindicato é batante complexa. Para chegar ao poder, o partido costuma usar o sindicato para fazer protestos e mobilizar as massas. O sindicato vê nisso a possibilidade de conquistar seus velhos objetivos com um seu representante no governo.

Uma vez no poder, entretanto, o partido pede ao sindicato temperança de conduta, moderação nos pleitos e ajuda para resolver os problemas da nação. O sindicato quer ajudar mas sem perder os objetivos de atender à classe trabalhadora. A situação se torna embaraçosa para os dois lados.

A literatura registra inúmeros casos desse embaraço. Na Inglaterra, por exemplo, Tony Blair, que é do partido trabalhista, ganhou as eleições com a ajuda dos sindicatos que criticaram ferozmente as mudanças introduzidas por Margareth Thatcher nas leis do trabalho. Uma vez no poder, Blair manteve todas as reformas da Dama de Ferro e, incontinenti, pediu aos sindicatos o máximo de moderação. Ao sindicalistas do setor siderúrgico, um dos mais fortes da Inglaterra, Blair puxou suas orelhas da seguinte maneira:

"Vocês precisam entender que o mundo está mudando muito depressa. Há dez anos, o aço e os trabalhadores da siderurgia estavam no centro de gravidade da economia britânica. Hoje, a Inglaterra consegue mais divisas exportanto o rock-and-roll do que exportando aço. O centro de gravidade da economia está ocupado por muitos outros tipos de trabalhadores, inclusive os músicos e cantores".

O que leva os políticos trabalhistas a mudarem de tratamento em relação aos sindicalistas depois de eleitos? Muitas das causas são óbvias; outras, mais obscuras. Vejamos algumas delas.

Um dos mais importantes fatores na mudança de conduta de Luis Inácio Lula da Silva é que, daqui a alguns dias, ele será não apenas o Presidente da República mas também o maior empregador do Brasil. Essa metamorfose tem um impacto enorme no penamento de qualquer pessoa.

Debaixo de sua autoridade estarão todos os servidores públicos do governo federal, os empregados das empresas estatais nas quais a União é acionista majoritário (Petrobrás, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e várias outras), os professores e funcionários das universidades federais, autarquias e outros órgãos da administração indireta.

Em todos esses setores a sindicalização é garantida por lei e praticada por sindicatos aguerridos, a maioria dos quais, ligada à CUT. As pautas de reivindicação ultrapassam em muito a capacidade dos orçamentos para atender os vários pleitos.

Durante trinta anos, o presidente eleito lutou junto com os dirigentes sindicais ligados a esses grupos. Melhor do que ninguém, ele conhece em profundidade a força de pressão desses companheiros – a quem pediu que deixassem de lado os pequenos temas (contribuição sindical, protestos em porta de fábricas e demandas artificiais) e ajudassem o presidente a enfrentar os grupos políticos que resistem as mudanças estruturais, em especial, as da previdência social e a tributária.

Ele disse com todas as letras que os sindicalistas não terão moleza no seu mandato e serão chamados a ajuda-lo na solução dos grandes problemas da nação. O novo presidente espera que a ação dos sindicatos vá muito além da negociação nas datas-bases e das desavenças sobre a organização sindical.

É viável para as centrais sindicais deixar de lado as lutas em favor das categorias que representam só porque o presidente precisa delas para resolver os macro-problemas da nação?

Esse é um terrível dilema para as centrais sindicais que apoiaram Lula no primeiro e/ou no segundo turno e agora recebem um apelo para se aquietarem. O que pode acontecer?

Mais cedo ou mais tade, uma parte do sindicalismo deve romper com o novo governo. Outra, porém, estará amplamente infiltrada nos órgãos do governo que têm por função levar avante a administração pública e as reformas anunciadas. Afinal, como ajudar, sem participação?

O apelo de Lula, portanto, tem dois sinais para os sindicatos que aceitarem ajuda-lo nas reformas estruturais. De um lado, ele deseja menos virulência em relação ao setor público. De outro, ele oferece posições preciosas para que colaborem nas mudanças.

Para os iniciados, isso cheira ao mais puro corporativismo dos tempos do Getúlio e herdado da Carta Del Lavoro de Mussolini. É claro, porém, que a linguagem será diferente. No velho corporativismo falava-se abertamente em colaboração entre empregados, empregadores e governo que, na prática, era uma deslavada cooptação. Agora a linguagem será a do diálogo social, do aplainamento das divergências e da busca de com sensos mínimos.

Será interessante observar quem vai aceitar e quem vai rejeitar essa troca – moderação por participação. Será igualmente interessante observar a mistura de sotaques que pode marcar a prática dessa nova linguagem.