Publicado na Folha de S. Paulo, 29/11/1987
Estabilidade e rotatividade
A discussão da estabilidade de emprego está dando ensejo a uma grande confusão conceitual sobre a questão da rotatividade. Vários constituintes têm argumentado que a taxa de rotatividade da mão-de-obra tem atingido o nível alarmante de 37% ao ano. Afirmam que as empresas brasileiras estariam trocando 37% de seus trabalhadores anualmente, em particular, nas épocas de aumentos salariais, com vistas a manter constante sua folha de pagamentos. Isso seria uma estratégia deliberada para trocar trabalhadores de salários mais altos por outros dispostos a trabalhar por menor remuneração. Para conter tal abuso, só mesmo a estabilidade na Constituição – sentenciou a Comissão de Sistematização.
Nesta hora em que o plenário da Assembléia Nacional Constituinte se prepara para votar em definitivo os dispositivos de garantia de emprego, convém examinar a questão da rotatividade com cuidado.
As taxas de rotatividade indicam permanência média no emprego. Indicam ainda o número de reposições realizadas pelas empresas. Quanto menor é a taxa de rotatividade, menor é a reposição e maior é o tempo médio de permanência dos trabalhadores nos seus empregos.
A rotatividade, dentre outros fatores, é afetada pelo nível de atividade econômica. Numa conjuntura recessiva, ela tende a diminuir porque, ao despedir, a empresa não contrata outro empregado no lugar. Nesse tipo de conjuntura, os próprios empregados evitam pedir demissão por medo de não encontrarem melhores oportunidades no mercado de trabalho. Numa situação de "boom" dá-se o inverso, ou seja, a rotatividade aumenta por iniciativa da empresa e dos empregados.
A rotatividade pode ter várias conseqüências para as empresas e empregados. Rotatividade excessiva desfalca a empresa de bons funcionários. Rotatividade zero impede a renovação e adaptação do pessoal à dinâmica da empresa. Do lado dos empregados, igualmente, rotatividade em excesso que redunde em rebaixamento de salários prejudica os trabalhadores. Mas mudanças de empregos em função de melhor remuneração promovem a ascensão social. Portanto, há muitas coisas misturadas dentro da mesma taxa de rotatividade. É impossível dizer que ela é só um mal.
Há rotatividades que promovem e outras que rebaixam os empregados. Mas qual é a participação de cada tipo na situação brasileira?
A taxa final de rotatividade engloba substituições e outros movimentos no mercado de trabalho decorrentes de: (a) morte dos trabalhadores; (b) aposentadoria; (c) pedido de demissão dos empregados; (d) migração e mudança de domicilio; (e) transferência de um estabelecimento para outro dentro da mesma empresa; (f) pedido dos trabalhadores para serem demitidos com vistas a levantar o FGTS; (g) despedida promovida pela empresa; (h) fechamento da empresa.
Portanto, a rotatividade provocada pela empresa do tipo (g) acima é apenas uma parcela da rotatividade total. Muitos constituintes ao discutirem o assunto atribuíram à despedida promovida pela empresa o total da rotatividade apurada pelo Ministério do Trabalho. Além do mais, consideraram que toda a rotatividade é rebaixante em termos salariais e profissionais. Pesquisas recentes e a própria experiência empresarial, entretanto, indicam que esse tipo de rotatividade constitui a menor parte da rotatividade total. De fato, os dados oficiais revelam que a taxa de rotatividade mensal no Brasil tem ficado em torno de 3,7%. Desta taxa, cerca de 50% é devida à iniciativa da empresa, ou seja, aproximadamente 1,8%. Por sua vez, esta rotatividade pode ser desmembrada em três parcelas, cada uma delas respondendo por aproximadamente 1/3 do fenômeno, a saber: (a) rotatividade decorrente de razões tecnológicas; (b) rotatividade provocada por desadaptação dos empregados em geral, detectada ao longo do período de experiência de noventa dias; (c) e, finalmente, rotatividade associada à estratégia de manutenção de folha salarial pela prática da dispensa de trabalhadores mais caros e contratação de outros mais baratos, em termos salariais. Assim sendo, a parcela da rotatividade mensal que preocupou os constituintes da Comissão de Sistematização seria apenas 0,6% - muito longe, portanto, dos 37% anuais mencionados por alguns parlamentares.
A rotatividade tem outras facetas igualmente obscuras. Ela é ainda um fenômeno pouco estudado entre nós. Por exemplo, o mesmo empregado pode, teoricamente, entrar e sair de empresas diferentes doze vezes por ano. Nesse caso, haverá doze movimentos, registrados pelas estatísticas oficiais como desligamentos e admissões. Mas não são doze trabalhadores. São doze desligamentos e admissões que atingiram o mesmo trabalhador. Esta separação não é automática nos dados oficiais. O pesquisador é que deve fazê-la no plano conceitual, pois na taxa final de rotatividade estão misturados trabalhadores que passaram por mais de um desligamento/admissão assim como trabalhadores diferentes que experimentaram um só movimento no período. Rotatividade, portanto, não se refere a trabalhadores "rodados" mas sim a desligamentos/admissões em relação ao número de posições de empregos existentes no mercado de trabalho em cada mês.
Confusão conceitual desse tipo, obviamente, conduz a deslizes de mensuração – e confusão de resultados. No caso em questão, parece que os constituintes da Comissão de Sistematização usaram uma medida anual de rotatividade baseada em definição muito peculiar – e não na definição convencional e oficial. Ao que tudo indica, tomaram o total de desligamentos ocorridos em 1986, segundo a Rais, e dividiram pelo número de trabalhadores empregados em um determinado mês (ou sua média anual). E acharam 37%! Esse resultado nada tem a ver com as taxas oficiais de rotatividade do Ministério do Trabalho. Estas taxas, como vimos, ficam em torno de 3,7% ao mês e levam em conta, apropriadamente, desligamentos/admissões no numerador e posições de emprego ocupadas no denominador (vínculos empregatícios).
É perigoso somar-se taxas de rotatividade mensal para se achar a taxa anual. A natureza do fenômeno exige medida mensal. Além disso, a simples soma nos levaria a absurdos insustentáveis da mesma maneira que uma taxa de absenteísmo de 1% ao dia nos conduziria, pela simples agregação, a 365% ao ano!
Por isso, nesta hora em que a rotatividade está sendo tomada como um dos principais problemas a serem contornados pela estabilidade, convém considerar o debate nos seus aspectos conceituais de mensuração. Há vários outros complicadores da rotatividade – que não podem ser tratados neste artigo – que também merecem exame. Afinal, os constituintes, em plenário, precisam tomar suas decisões com base em dados concretos e não imaginários.
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