Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/03/2002.
Reforma trabalhista italiana ameaça fracassar
No último sábado (23/03/2002), mais de dois milhões de italianos saíram às ruas para protestar contra uma mini-reforma das leis do trabalho, já aprovada pelo Premiê Silvio Berlusconi e por seu gabinete.
Na quarta-feira (19/03/2002) foi assassinado o professor Marco Biagi que assessorou o Ministro do Trabalho na elaboração da referida reforma.
Para esta semana, as centrais sindicais prometem continuar os protestos para evitar que as mudanças referendadas pelo Conselho de Ministros sejam aprovadas pelo Parlamento.
Por que uma reação tão violenta? Afinal, em que consiste essa reforma?
A grande celeuma está em torno do artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores Italianos. Esse artigo dá à Justiça do Trabalho poderes absolutos para reintegrar na empresa todo trabalhador que é despedido sem justa causa.
Na prática, o dispositivo torna as demissões impossíveis, até mesmo quando os trabalhadores se mostram deliberadamente improdutivos. A maioria das sentenças (em ações custosas e pagas por quem perde - os empregadores) obriga a reintegração. Isso tem desestimulado as empresas a contratar novos trabalhadores. Como sempre acontece nesses casos, fechando a saída, fecha-se a entrada.
O Conselho da União Européia, nas recentes reuniões de Lisboa e Barcelona, solicitou que todos os países membros removam os obstáculos ao emprego como, por exemplo, o Artigo 18 da lei italiana. Essa foi a tarefa atribuída ao brilhante Marco Biagi, com quem mantive um bom relacionamento profissional e de amizade por mais de 20 anos.
Biagi sabia que ia mexer em um dos mais venerados tabus das centrais sindicais. Por outro lado, ele dispunha de pesquisas comprovando que esse obstáculo era um dos principais responsáveis pela renitente taxa de desemprego que, na Itália, se mantém em 9,2% apesar do crescimento da economia e das milhares de vagas não preenchidas por empresas que preferem gastar mais, mecanizando a produção, do que contratando trabalhadores. Estudos comparativos mostram que para cada 1% do crescimento do PIB nos Estados Unidos, há um aumento do emprego da ordem de 0,51%. Na Itália, o mesmo 1% gera um aumento do emprego de apenas 0,06%.
Os sindicatos italianos, como os de outras partes do mundo, raramente se importam com os desempregados ou com quem está no mercado informal. Sua missão é proteger os que já estão protegidos, reforçando a cidadela dos incluídos, e deixando de fora, os excluídos.
Em face da esperada resistência, Marco Biagi propôs, cautelosamente, que a rigidez do artigo 18 fosse relaxada em apenas três condições: (1) para as pequenas empresas que estão crescendo e precisam empregar mais trabalhadores; (2) para as que se dispõem a formalizar empregados informais; (3) e para as que concordam em mudar os contratos de seus empregados de prazo determinado para prazo indeterminado. Ademais, a mudança seria experimental (por quatro anos), entrando em vigor só daqui a um ano.
O objetivo básico era a ampliação do emprego formal, seguindo a trajetória de mudanças já realizadas nos demais países da União Européia. Silvio Berlusconi diz que, com o assassinato de Biagi, o assunto virou uma questão de honra. Promete aprovar a reforma a qualquer custo.
Mas, o mais provável é que a crise política que tomou conta do país, venha bloquear tais mudanças e abalar a estabilidade de Berlusconi. Outros ministros tentarem isso nos últimos oito anos, sem sucesso. Nesssas empreitadas, dois assessores do Ministério do Trabalho tiveram o mesmo fim de Biagi: Massimo D'Antona, professor da "Università la Sapienza" (assassinado em 1999) e Ezio Tarantelli professor da "Università di Roma" (assassinado em 1985).
Marco Biagi morreu. Perdi um grande amigo. Vai me fazer muita falta. Ele era tão simples quanto inteligente. Tão modesto quanto respeitado. Sua atividade de pesquisador foi intensa. Publicou dezenas de livros e centenas de artigos técnicos. Conhecia o trabalhismo do mundo inteiro. Estava sempre lecionando cursos novos nas Universidades de Modena e Bologna, onde morava.
A academia perdeu um raro cientista. Mas suas idéias ficaram. Algum dia, a Itália precisará delas. Elas estarão lá. Vivas como nunca, e para serem adotadas por quem vai dizer: por quê não fizemos isso antes?
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