Publicado no Jornal da Tarde, 20/02/2002
"Recalls" de automóveis e relações do trabalho
Foi no meio do Carnaval, quando alguns descansavam e outros dançavam, que os 60 mil proprietários dos novos veículos FIAT, Volkswagen, General Motors e Ford ficaram sabendo que seus carros podiam apresentar falhas nos freios. Incontinenti, as fábricas anunciaram um "recall" e pediram à fabricante dos freios (Continental do Brasil) para providenciar a troca.
Nesses casos, as investigações são complexas e demoradas, e costumam provocar grande frustração para os proprietários e fortes perdas para as empresas. No ano 2000, a Ford e a Firestone dos Estados Unidos anunciaram um gigantesco "recall" de 14,4 milhões de pneus. O principal problema era a separação da borracha da lona interna, o que ocasionava um estouro em alta velocidade. O caso foi gravíssimo, tendo provocado 270 mortes e mais de 800 feridos.
Os pneus que deram problema haviam passado por todos os testes de qualidade da Firestone e da Ford. Depois dos acidentes, foram examinados por dezenas de laboratórios independentes. Não se conseguiu detectar a verdadeira causa do defeito.
As perdas das duas empresas foram catastróficas. Só no ano 2000, a Ford gastou cerca de US$ 2,1 bilhões na operação de troca e uma perda incalculável da sua boa imagem. As ações judiciais poderão ultrapassar os US$ 2 bilhões. Agravada pela recessão, a Ford entrou em crise, decidindo fechar cinco fábricas e despedir 35 mil funcionários 10% da sua força de trabalho.
A Firestone enfrenta processos judiciais no valor de US$ 1 bilhão e estima um gasto superior a US$ 2 bilhões com a substituição dos pneus. Suas ações na bolsa de valores caíram drasticamente e a empresa já fechou várias unidades.
No meio de uma avalanche de pesquisas de engenharia e estrutura de materiais, dois economistas das Universidade de Princeton fizeram um estudo sobre o ambiente de trabalho na fábrica Firestone em Decatur (Illinois), que produziu a maioria daqueles pneus. Eles descobriram que no período de fabricação (1996-99), empregados e empresa viveram um verdadeiro clima de guerra. Os empregados não aceitaram a nova administração de recursos humanos (iniciada em 1996), por julgá-la incompetente. Esta acusava os dirigentes sindicais de acomodados e mal acostumados com regalias que seriam removidas (Alan B. Krueger e Alexandre Mas, "Strikes, Scabs and Tread Separations: Labor Strife and the Production of Defective Bridgestone/Firestone Tires", janeiro de 2002).
De fato, nos anos de 1997-98, a empresa eliminou benefícios, cortou salários e mudou turnos. O relacionamento deteriorou-se e os trabalhadores entraram em greve. A Firestone contratou substitutos (o que é permitido pela lei americana), causando forte prejuízo aos grevistas. Depois de cinco meses sem salários, a contragosto, os empregados aceitaram as novas condições, e voltaram ao trabalho.
Krueger e Mas descobriram que a maioria dos pneus com defeito foram fabricados na época dos desentendimentos. Por exemplo, a proporção de defeitos na fábrica em Decatur foi muito superior à de Wilson (North Carolina), onde o relacionamento entre empregados e empresa se manteve cordial. As duas fábricas usaram os mesmos métodos, matéria prima, e testes.
Os pneus produzidos na fábrica em Decatur durante o período de tensão, levaram os proprietários dos carros a apresentar um volume de reclamações que foi 376% maior do que ocorreu com os pneus de outras fábricas da Firestone. Nos tempos de paz, as reclamações contra os pneus produzidos em Decatur estiveram dentro da média. A proporção dos que procuraram reparações da Justiça contra mortes ou ferimentos, foi 250% mais alta para quem usou os pneus fabricados nos períodos de tensão.
Krueger e Mas concluem que pressionar demais os funcionários; submetê-los a perdas econômicas exageradas (incluindo a própria dignidade); deixá-los por muito tempo na incerteza; e ameaçá-los o tempo todo com dispensa, é contraproducente, e pode ter um alto custo para as empresas.
Não estou insinuando nada no caso da Continental do Brasil, sobre a qual não disponho de nenhum dado. Relato apenas uma lição sobre a importância de se criar e manter um bom ambiente de trabalho para que as pessoas trabalhem com gosto, zelo e prazer.
Em qualquer investigação, sempre convém examinar o relacionamento entre empresa e empregados.
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