Publicado no Jornal da Tarde, 03/09/2003.
Despir um santo para vestir outro...
A reforma tributária aprovada pela Câmara dos Deputados pretende deslocar uma parte das contribuições previdenciárias da folha de pagamentos para a receita bruta das empresas (faturamento), com o propósito de reduzir o peso dos encargos sociais e ajudar a criar e formalizar empregos.
Será que isso vai dar certo? Penso que não. Esse sistema de "contribuições cruzadas" trará problemas mais problemas do que soluções tanto para as empresas como para a própria Previdência Social. Nos dois casos, haverá um efeito negativo sobre o emprego. Analisemos cada um deles.
1. Impactos sobre competitividade e empregos - Atualmente, as contribuições previdenciárias, além dos 20% do INSS e 2% (em média) para o seguro acidentes do trabalho, incidem sobre várias outras despesas da folha de pagamentos (13o. salário, férias, abono de férias, repouso remunerado, etc.).
Para calcular a alíquota sobre o faturamento que gere todos os recursos previdenciários hoje gerados sobre a folha de pagamentos, a conta é complexa e bastante controvertida. As empresas que são intensivas em mão-de-obra aplaudirão. As que são intensivas em capital protestarão. Será difícil encontrar um ponto médio que atenda os interesses dos dois grupos.
Muitos vêem nisso mais justiça social, pois "quem fatura muito e emprega pouco, ajudaria a proteger os que trabalham em empresas que empregam muito e faturam pouco". As empresas mais tecnificadas "bancariam" a aposentadoria dos empregados das empresas menos tecnificadas. É um sistema sui generis no qual uns pagam a aposentadoria dos outros. Nenhum país se aventurou a tal esgrima muito menos a implantar um sistema que extrai uma parte da arrecadação previdenciária da folha de pagamentos e outra do faturamento das empresas.
A aludida migração elevará os custos de produção para muitas empresas, em especial, as que já gastam muito com capital, pois daqui para frente gastarão muito também com o fator trabalho. Isso afetará a sua competitividade assim como sua capacidade de investir e gerar empregos.
Ao jogar a contribuição previdenciária sobre a receita bruta - que está mais ligada ao preço final dos bens e serviços - a nova sistemática "turbinará" o efeito cascata do atual sistema tributário, o que será contraproducente para o emprego, indo na contra-mão da própria reforma tributária. Ademais, muitas das contribuições atuais já são destinadas à seguridade social (PIS, COFINS, CSLL, etc).
2. Impactos sobre a Previdência Social - Do lado da Previdência Social, o novo sistema vai gerar uma enorme incerteza. O faturamento das empresas está muito mais sujeito aos ciclos econômicos e às turbulências da economia do que as folhas de pagamento. Quando há uma recessão, o faturamento cai instantaneamente. Isso vai afetar a receita da Previdência Social e a pontualidade de pagamento aos pensionistas e aposentados.
Ademais, as empresas altamente tecnificadas e de salários elevados, respondem por uma parcela expressiva da receita da Previdência Social. Tais empresas têm muito espaço para fazer o chamado planejamento tributário em cima da receita (mesmo bruta), o que já não acontece com a folha de pagamentos. O resultado desse planejamento pode fazer aumentar a evasão e a elisão fiscais, reduzindo as contribuições previdenciárias.
Finalmente, a idéia de penalizar quem moderniza, carrega um certo viés contra a automação, mecanização e outros avanços. Parte-se do princípio de que os empresários trocam trabalhadores por máquinas com total liberdade. Isso não é assim. O uso de tecnologia está muito mais ligado à natureza dos processos do que à vontade dos empregadores. Há certas atividades que só podem ser realizadas com a ajuda de máquinas, equipamentos, computadores, robôs, etc. Como extrair petróleo em alto mar sem plataformas e sondas sofisticadas?
A maioria das empresas não terá chance de substituir máquinas por trabalhadores. Não será a nova penalização que vai fazê-las gerar mais empregos. Isso vai afetar a competitividade daquelas empresas e sua capacidade de compra de bens e serviços junto às pequenas e médias empresas - o que afetará o emprego de um modo geral.
Em suma, o mínimo que se pode dizer é que a nova fórmula de financiamento encerra enorme complexidade. Todos querem reduzir os encargos sobre as folhas de pagamento. Ótimo! Mas despir um santo para vestir outro parece não ser a melhor estratégia. Convém ao Senado Federal, antes de aprovar o que veio da Câmara dos Deputados, abrir audiências públicas para se estudar bem essa esdrúxula parafernália que o Brasil pretende implantar.
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