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Publicado em O Estado de S. Paulo, 13/02/2001

O trabalho infantil e a ALCA

José Pastore

Dentro do espírito da Convenção 182 da OIT que visa eliminar as piores formas de trabalho infantil, o Ministério do Trabalho acaba de baixar portaria proibindo aos menores de 18 anos o exercício de mais de 200 atividades, em vários setores da economia, a maioria das quais referente a práticas perigosas, insalubres e penosas.

Ninguém discute a impropriedade de se admitir menores de idade para afiar ferramentas, operar serras de fita, descer em minas profundas, trabalhar em guilhotinas esgotos e cemitérios. Nesse campo, porém, há um outro problema. Até agora, passaram despercebidas as conseqüências da Emenda Constitucional no. 20, de 1998, que elevou a idade mínima para 16 anos e fechou as exceções.

Durante muito tempo o Brasil adotou a idade de 14 anos, permitindo-se ainda a realização de trabalhos leves para os menores de 12 a 14 anos. A Emenda Constitucional no. 20 excetuou apenas o trabalho do aprendiz, a partir de 14 anos. Fora isso, menores de 16 anos não podem fazer absolutamente nada no Brasil. Tudo é violação legal.

Com essa decisão, tomada à ultima hora (quando se discutia a elevação da idade de aposentadoria) e sem os devidos cuidados, o Brasil destoou do resto do mundo. Isso pode nos dar muita dor de cabeça na hora de discutir as normas trabalhistas nos acordos comerciais, como a ALCA.

A grande maioria dos países, além de fixar uma idade mais baixa, especialmente para trabalhos leves, abre uma série de exceções, todas elas cercadas das devidas proteções ao menor e da exigência da freqüência à escola. Por exemplo, na França, Itália, Portugal e Irlanda a idade mínima é 14 anos; na Alemanha, Noruega, Suécia, Dinamarca, Inglaterra, Suíça é 13. Para trabalhos agrícolas ocasionais e leves a Áustria fixou a idade mínima em 12 anos (OIT, El Trabajo Infantil, Genebra, 1996).

Inúmeros países fixam a idade em função do tipo de atividade. Nos Estados Unidos, por exemplo, há uma relação de atividades que são proibidas para os que têm entre 16 e 18 anos. Todas as demais, são permitidas. Outras, são proibidas para os menores de 14 a 16 anos. As demais são permitidas. Mesmo para menores de 14 anos, há uma série de exceções para que o trabalho seja exercido de forma legal. E o trabalho na agricultura está fora da legislação federal – exceto as atividades perigosas. Aliás, para nenhuma faixa de idade admite-se a exploração do menor e o trabalho forçado, insalubre, penoso ou imoral.

Qual é a conseqüência disso? Uma série de atividades legalmente praticadas por menores nos Estados Unidos são ilegais no Brasil – entregador de jornais, cortador de grama, catador de bola em eventos esportivos, etc. Essa assimetria pode prejudicar o Brasil nestes dias em que, no comércio internacional, tudo é motivo para se inventar uma barreira não tarifária.

Na negociação da ALCA, é provável que ressurja a discussão sobre cláusulas sociais, em especial, as que tratam do trabalho infantil. Digamos que um negociador brasileiro diga para um americano que na América, muitos meninos servem sanduíches nas lanchonetes – na tentativa de justificar o trabalho do rapaz de 15 anos que vai na escola pela manhã e faz pacotes na fábrica de calçados à tarde.

Muito provavelmente o brasileiro vai receber a seguinte resposta: "Na América, servir sanduíches é legal para um rapaz de 15 anos. No Brasil, colocar sapatos dentro das caixas é ilegal. Eu não estou querendo impor nada ao Brasil. Desejo apenas incluir nas regras da ALCA que cada país respeite suas leis trabalhistas. Não posso admitir importar de um País que legisla de um jeito e quer fazer de outro".

Para muitos, esta é uma filigrana. Mas, para quem está querendo achar uma pena no ovo, é a descoberta de um verdadeiro espanador. A armadilha foi criada por nós mesmos, ou melhor, pelos legisladores que promoveram a mudança, insistindo em ignorar as implicações econômicas e sociais das medidas trabalhistas.

E agora, o que fazer? É bom ir pensando em mudar novamente a Constituição Federal. Esse é um assunto explosivo e que provocará movimentos apaixonados. Mas, mesmo mantida a idade de 16 anos, seria urgente estabelecer exceções condizentes com a natureza e as condições de vida dos menores que integram as diversas faixas de idade, assim como a condição de freqüência à escola. É isso que foi feito na maioria dos países com os quais teremos de negociar daqui para frente. É verdade que o Brasil é o Brasil. Mas, por que temos de ser tão diferentes do resto do mundo?