Publicado em O Estado de S. Paulo, 10/10/00
A prevalência do negociado sobre o legislado - II
José Pastore
Em artigo anterior, publicado nesta coluna (26/09/2000) apresentei uma proposta de reforma constitucional para permitir que, com exceção de verbas de terceiros e assuntos de convenções internacionais fundamentais ratificadas pelo Brasil, o que viesse a ser negociado entre as partes prevaleceria sobre o legislado. Neste artigo (último da série), examinarei os riscos e as vantagens dessa idéia, usando como base, as perguntas enviadas pelos meus leitores.
1. Essa proposta não significa revogar direitos sociais? Não, porque todos os direitos sociais seriam mantidos. Ficaria a critério das partes negociá-los ou não. Essa negociação poderia ser para cima ou para baixo.
2. Negociar para baixo não é perder? Nem sempre. Como toda negociação, esta também seria uma troca. Empregados e empregadores poderiam trocar alguns direitos legislados (ou parte deles) por outras vantagens. Na recessão, por exemplo, os trabalhadores podem ter interesse em fazer concessões para garantir o emprego.
3. Mas, nessas concessões, não haveria perdas? Quem achar que isso é perda, é melhor não negociar. Lembro, porém, que os direitos negociados prevaleceriam apenas durante a vigência do contrato. Terminado o contrato, voltariam a prevalecer os direitos legislados, a não ser no caso de nova negociação. Mas, se uma vantagem de hoje se transformar em perda amanhã, não convém renegociar.
4. Devido à escassez de empregos, as empresas não coagiriam seus empregados a negociar o que não querem? Pode haver esse risco como, aliás, já acontece no mercado informal. Para minimizá-lo, a Constituição teria de estabelecer que essa negociação só vale quando as empresas (ou sindicatos patronais) firmarem contratos coletivos com os sindicatos de trabalhadores.
5. Como contrabalançar o grande peso das empresas? Se os trabalhadores perceberem que negociar é desvantajoso, eles devem exigir que seus sindicatos não negociem, abrigando-se nos direitos legislados. Mas, é bom lembrar que, com a lei atual, numa hora de crise, a maioria das empresas simplesmente despedem, sem negociar absolutamente nada. E quanto mais rígida (e onerosa) é a lei, mais rapidamente elas despedem. Hoje 7% dos brasileiros estão desempregados e 60% na informaldiade.
6. Não pode haver um trabalhador desesperado que aceita, por exemplo, uma jornada de trabalho de 12 horas por dia? O risco existe. Na verdade, isso também ocorre no mercado informal dos dias atuais. Mas, no sistema proposto, onde a negociação desse assunto só pode ser coletiva, é pouco provável que um sindicato ou uma central sindical venha a concordar que seus filiados aceitem condições de trabalho subumanas.
7. E quando os sindicatos são fracos, quem vai negociar pelos trabalhadores? Os sindicatos brasileiros melhoraram muito a sua capacidade de negociar. Mas, quando os trabalhadores não confiam no sindicato, é melhor não negociar nada, e ficar com os direitos legislados. Para eles, não haverá perdas em relação ao sistema atual.
8. Por que não deixar a situação como está? Porque os direitos legislados estão protegendo apenas 40% dos brasileiros ocupados: 60% estão na informalidade. O mercado informal é injusto e desumano para os trabalhadores e perverso para as finanças públicas, porque o Estado nada recolhe para a seguridade social. Além disso, muitos empregados e empregadores têm um enorme interesse em negociar o que a lei atual não permite. É urgente modernizar a lei.
9. Não é complicado conviver com dois sistemas? Na verdade, trata-se de um novo sistema que mantém direitos básicos e abre opção para as partes negociar o que desejam, como se faz nos países que evoluíram na área trabalhista, sem problemas. É a "flexiseguridade" – um sistema que introduz a flexibilidade, preservando a seguridade.
10. Qual a vantagem concreta do sistema proposto? Ele garante o respeito a um mínimo de direitos inegociáveis (verbas de terceiros e convenções fundamentais) e abre o espaço para as partes encontrarem proteções realistas. Com isso, amplia-se o mercado formal, melhora a competitividade das empresas e reduzem-se as ações trabalhistas.
11. É certo que isso aumenta o emprego formal? Não. Nada é certo quando se depende da vontade dos empregados, empregadores e sindicatos, e da evolução da própria economia. É provável que uma parte da força de trabalho (devido à natureza das atividades e profissões) continue na informalidade mas, para ela, é possível viabilizar "proteções portáteis", atreladas aos indivíduos e não aos vínculos empregatícios.
12. Quais as mudanças que precisam ser feitas para garantir um bom funcionamento do sistema proposto? Além de modificar o artigo 7º da Constituição Federal, abrindo a opção pela negociação, essa reforma requer mudanças na organização sindical (art. 8º), na representação dos trabalhadores nos locais de trabalho (art. 9º) e na competência da Justiça do Trabalho (art. 114). Além disso, serão necessárias leis ordinárias para disciplinar a negociação, a vida sindical e resolução de conflitos. No campo trabalhista, nada funciona isoladamente. Tudo está muito entrelaçado.
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