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Publicado em O Estado de S. Paulo, 26/09/00

A prevalência do negociado sobre o legislado – I

José Pastore

No Brasil, depois de consumada uma demissão, empregados e empregadores podem negociar praticamente tudo. Na Justiça do Trabalho, ou nas comissões de conciliação prévia, o reclamante se apresenta com uma lista de dez ou doze pleitos (muitos deles relativos a direitos inegociados), somando R$ 5 ou 6 mil, e o juiz, ou a comissão de conciliação acabam levando as partes a negociar quase todos, em bloco, fechando o acordo por R$ 2 ou 3 mil.

É incrível. Negocia-se na hora da morte do contrato, mas não durante a sua vigência ou antes de ser firmado. Para ser justo, as únicas instâncias em que isso é permitido referem-se ao salário e à jornada de trabalho. Nos demais assuntos trabalhistas, os direitos são rígidos e não podem ser transacionados, mesmo que as partes desejem e acham isso mais útil.

O triste da história é que os tais direitos inegociáveis estão sendo usufruídos por uma parcela pequena (40%) e cadente. A grande maioria dos brasileiros trabalha na informalidade, sem nenhuma proteção, o que desprotege também o Estado pois, apesar de nada arrecadar daquela parcela para a seguridade social, aquele tem pesadas responsabilidades nos campos da saúde, assistência social e aposentadoria de idosos carentes. A informalidade é um problema grave - ainda maior do que o desemprego.

O mercado informal atual não pode ser totalmente formalizado, é verdade. Mas, se conseguíssemos regularizar, digamos, uns 50%, daríamos um grande passo no sentido de ampliar a proteção social e viabilizar a Previdência Social.

A possibilidade de negociar direitos de natureza econômica (hoje inegociáveis), simplificaria e estimularia o processo de contratação, colocando mais ordem na negociação que já ocorre no mercado informal. Como se sabe, empregados e empregadores, ao constatarem que uma contratação legal gera despesas indiretas da ordem de 100%, os dois lados decidem dividir entre si uma parte dessas despesas, firmando um "acordo de cavalheiros" e usando verbas que não lhes pertencem (Previdência Social).

Não seria melhor assegurar a inegociabilidade dessas verbas e, com exceção também do que faz parte das Convenções Internacionais Fundamentais ratificadas pelo Brasil, abrir espaço para negociar as demais?

Precisamos fazer alguma coisa para trazer para o mundo dos incluídos uma parcela da imensa legião de excluídos (mercado informal). Para tanto, é preciso deixar que surjam arranjos negociados dentro das proteções possíveis. Isso criaria contratos "sob medida" para grupos vulneráveis: jovens, mulheres, rurais e pessoas de meia idade.

A prevalência do negociado sobre o legislado é de grande importância para o próprio mercado formal. Muitas vezes, evitam-se demissões através da negociação de alguns direitos. Há também o inverso. No aquecimento econômico, os trabalhadores negociam acima dos mínimos legais.

A montagem de um sistema em que o negociado prevaleça sobre legislado requer cuidados. Em primeiro lugar, há que se evitar a negociação individual. Ela precisa ser coletiva, e com a participação dos sindicatos. Medidas complementares devem reformar a organização sindical de modo a estimular o fortalecimento das entidades representativas e desestimular as demais. Com a ampliação do poder de negociar, surgiria um novo mundo sindical.

Em segundo lugar, há que se pensar um mínimo de proteção para essa negociação. Como se trata de uma negociação de direitos constitucionais, convém meditar. Se, de um lado, o contrato coletivo nacional é irrealista para a diversidade do País, de outro, o contrato por empresa cria desequilíbrios para os trabalhadores, o que abre o campo para a negociação articulada (dentro de setores, categorias, regiões, localidades e empresas), através de contratos do tipo "guarda-chuva", que contempla adaptações legítimas.

Em terceiro lugar é imperioso preservar todos os atuais direitos da Constituição Federal e na CLT. Ou seja, a negociação teria de ser voluntária, e válida, é claro, durante a vigência do contrato. Vencido o contrato, havendo arrependimento, ou modificadas as condições iniciais, as partes passariam a ser protegidas, automaticamente, pelos direitos atuais, do jeito que estão.

Na prática, o caput do artigo 7º da Constituição Federal incorporaria uma simples (e profunda) mudança na sua parte inicial. Onde se lê: "São direitos dos trabalhadores..." ler-se-ia: "Salvo negociação coletiva, são direitos dos trabalhadores..."

Essa idéia não é nova. Na verdade, ela vem sendo cogitada desde a aprovação da Constituição Federal em 1988 que engessou o sistema trabalhista brasileiro. O que está faltando no debate atual é um exame desapaixonado dos prós e contra dessa proposta. Esse será o objetivo do próximo artigo.