Publicado em O Estado de S. Paulo, 01/08/00
Redução de jornadas de trabalho: qual delas?
José Pastore
As discussões sobre redução de jornada de trabalho no Brasil têm negligenciado nuanças metodológicas que podem alterar as conclusões e as propostas de mudança. Algumas são bastante sutis. Comecemos pela mais sutil.
1. Pesquisas recentes descobriram importantes diferenças entre o número de horas trabalhadas relatado pelas pessoas e o informado pelas empresas. O primeiro é maior do que o segundo. Nas entrevistas realizadas no domicílio, como é o caso da PNAD, as pessoas tendem a dizer que trabalham 40, 45, 50 e até mais horas - o que é verdadeiro para captar o trabalho realizado desde a hora em que as pessoas acordam até a hora que dormem, mas falso para medir as horas trabalhadas na empresa. Mesmo para o tempo trabalhado na empresa, o dado coletado no domicílio tende a ser afetado pela ocorrência de horas extras episódicas no mês da entrevista, sendo difícil obter-se uma média fidedigna do tempo trabalhado, com e sem horas extras (Jerry A. Jacobs, "Measuring time at work: are self-reports accurate"?, Monthly Labor Review, Dezembro de 1998).
2. Quando se fala de jornada semanal, é importante distinguir-se a jornada legal da jornada contratada. A primeira, em geral mais longa, é estabelecida por lei. A segunda, mais curta, é acertada por negociação(Roger Blanpain, Legal and Contractual Limitations of Working Time in the European Union, Leuven: Peter Press, 1997; OIT, Working Time around the World, Genebra, 1995).
No Brasil, em várias comparações que circulam na imprensa fica-se sem saber se o foco é a jornada legal ou a contratada. Entre elas há grandes diferenças. Na União Européia, por exemplo, por força de convenção internacional, a jornada semanal legal é de 48,0 horas. Mas a jornada média contratada, em 1999, foi de 38,6 horas - 20% menor do que a legal. Na Alemanha e Itália, igualmente, a jornada legal é de 48 horas, mas as contratadas, em 1999, foram, em média, de 37,4 e 38,0 horas, respectivamente. Na Áustria, os valores são de 40,0 horas para a legal e 38,5 horas para a contratada. Na Irlanda, 48,0 e 39,0, respectivamente. Na Suécia, 40,0 e 40,0 (Euroline, Working Time Developments - 1999, Dublin: European Foundation for the Improvement and Living and Working Conditions, 2000).
3. Um outro problema que afeta conclusões e recomendações, decorre da mistura do trabalho em tempo integral com o realizado em tempo parcial. Nos países onde não há separação, e nos quais o tempo parcial é elevado (o que é comum na Europa), a extensão da jornada semanal tende a ser deprimida.
Quando se faz a separação, o número de horas trabalhadas pelas pessoas em regime de tempo integral, sobe. Na União Européia, por exemplo, a jornada semanal média contratada salta de 38,6 para 40,5 horas. Na Áustria, Irlanda e Suécia, elas passam de 38,5, 39,0 e 40,0 para 40,1 horas (nos três casos).
4. Há mais uma complicação. Como esse assunto é objeto de negociação, as diferenças de jornadas entre setores, e dentro de cada país, são expressivas. No setor metalúrgico da Alemanha, por exemplo, a jornada semanal contratada, em 1999, foi de apenas 35 horas, enquanto que na Suécia, Portugal e Itália, foi de 40 horas. Se descermos ao nível de empresas, há vários casos, na Alemanha, em que se negociou menos de 35 horas por semana.
É interessante notar, porém, que, apesar da redução de horas de trabalho constituir uma das principais reivindicações dos sindicatos da União Européia, nos anos recentes, a jornada semanal contratada ficou praticamente inalterada. Essa jornada foi de 38,7 horas, em 1998, e 38,6, em 1999. Mesmo no setor metalúrgico dos países da União Européia, onde militam sindicatos batalhadores, a jornada semanal contratada, em 1999, foi de 38,4 horas - bem próxima da média de todos os setores (38,6).
De tudo isso depreende-se que a definição e mensuração da jornada de trabalho constituem assuntos complexos. A mistura de conceitos e de medidas pode levar os interlocutores a discutir coisas diferentes sob o mesmo nome.
A jornada legal é um mero marco de orientação, e tende a ficar estável por muito tempo. Na maioria dos países, a jornada de trabalho tem sido reduzida ou ampliada por meio de negociação coletiva, o que tem permitido os ajustes de custo, do lado da empresa, e o aumento do emprego, do lado dos trabalhadores.
A jornada de trabalho semanal começa a ser substituída pela jornada anual. Do ponto de vista da pesquisa, esta é melhor para captar o uso de horas extras. Do ponto de vista prático, é mais útil para acomodar as flutuações sazonais, picos de demanda ou esfriamento das recessões.
Neste momento em que o Brasil discute a redução da jornada de trabalho, parece de aconselhável levar em conta essas nuanças de definição, mensuração e método de modificação da jornada de trabalho. Nesse extenso cardápio de opções, o primeiro passo é escolher o prato, em seguida, os talheres e, finalmente, pagar a conta.
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