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Publicado em O Estado de S. Paulo, 18/07/00

Crianças trabalhadoras e hipocrisia americana

José Pastore

O forte editorial de O Estado de S. Paulo de 26/06/2000 ("Trabalho infantil e hipocrisia"), baseado no noticiário da semana anterior, segundo o qual milhares de crianças trabalham no setor agrícola dos Estados Unidos, destacou a importância de, nas discussões trabalhistas, separar-se humanismo de protecionismo.

A realidade do mercado de trabalho é complexa em todos os países. Muitas vezes, surpreendente, como é o caso da alta incidência do trabalho de menores de idade nos Estados Unidos. É isso que mostram Doris R. Entwisle e colaboradores, em artigo recente ("Early Work History of Urban Youth", American Sociological Review, Abril de 2000).

Os autores revelam que praticamente todos os alunos americanos do "high school" trabalham e estudam. Meninos entregam jornais e cortam grama de jardins, enquanto que meninas cuidam de crianças ("baby-sitting") e ajudam na limpeza de casa. Há milhões de office-boys, limpadores de quadras de tênis, auxiliares em restaurantes, lanchonetes, shopping centers, supermercados, etc.

O leitor se surpreenderá, acredito, ao saber que, em Baltimore (estado de Maryland), na idade de 13 anos (ilegal para o trabalho urbano), 51% dos alunos trabalham. Entre os adolescentes de 14 anos, essa proporção sobe para 57%; aos 15, 75%; aos 16, 70%; e aos 17, 72%.

Nunca vi nenhuma ONG reclamando disso. Ao contrário, trabalhar e estudar, sempre foi a marca da sociedade americana. E, até hoje se discute se essa prática é boa ou má para o progresso nos estudos e nas carreiras.

O Brasil tem sofrido ataques dos americanos e outros estrangeiros por causa do trabalho infantil – em parte justificados, pois cerca de 4% da nossa força de trabalho são formados por crianças entre 5 e 14 anos. Quase 3,5 milhões - e 7 milhões se ampliarmos a faixa até os 16 anos.

Mas, será que o trabalho afasta todos esses brasileiros da escola? Os dados mostram que não. No mês passado, o Ministério das Relações Exteriores apresentou um documento nas Nações Unidas ("Relatório sobre a Implementação dos Resultados da Cúpula Mundial do Desenvolvimento Social", Genebra, 2000) mostrando que 88,4% das crianças brasileiras de 10 a 14 anos somente estudam, e 6,3% estudam e trabalham. Isso dá quase 95%.

Portanto, no Brasil a maioria das crianças só estuda. Nos Estados Unidos, a maioria estuda e trabalha. Mais importante do que isso é verificar que apenas 1% das crianças brasileiras trabalham e não estudam.

É verdade que ainda temos 4,3% que nem estudam, nem trabalham. Mas, com esforço, o Brasil conseguiu matricular 96% das crianças na escola. Falta pouco para os 100%. O nosso grande problema é manter essas crianças nos bancos escolares e oferecer a elas uma educação de boa qualidade.

Mas, não é com isso que os estrangeiros se incomodam. Eles querem que as meninas parem de pregar botões nas oficinas de confecções, pouco se importando vão para a escola ou para a prostituição. A prova disso está nos repetidos flagrantes de estrangeiros - e até diplomatas! - que patrocinam a céu aberto o comércio sexual de meninas vulneráveis no Rio de Janeiro, Havana, Bangcoc e outras cidades.

A discussão sobre a obediência a padrões trabalhistas exige cautela. Até mesmo nos países desenvolvidos, não é fácil passar da lei para a realidade. O Ministério do Trabalho dos Estados Unidos, por exemplo, possui 400 escritórios para controlar e punir o trabalho infantil e outros desvios legais. Com toda essa parafernália, os fiscais realizam apenas 600 inspeções anuais nas oficinas de confecções, onde tais desvios são mais freqüentes. Isso, além de irrisório, é ineficaz. Mais de 65% daquelas empresas desrespeitam os padrões trabalhistas (David Weil, "Regulating Labor Standards in the U. S. Apparel Industry", Industrial Relations Research Association, Boston Meeting, 2000).

Como se vê, os problemas de lá são parecidos com os de cá, o que torna perigoso sair atirando pedras a esmo nesse campo. Os fabricantes de confecções sentem de longe o "cheiro" da fiscalização e, com a velocidade de um raio, desocupam os locais de trabalho e somem, da mesma forma que os camelôs brasileiros "sublimam" ao prenunciarem a chegada dos fiscais da Prefeitura nas calçadas do Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. É a corrida do gato e do rato.

Portanto, ao leitor, sugiro espírito crítico na discussão do trabalho infantil e outros padrões trabalhistas, e que medite bem sobre uma das conclusões mais contundentes do referido editorial: "Agora já não resta dúvida sobre a má-fé e o protecionismo disfarçado das pressões dos Estados Unidos para introduzir cláusulas trabalhistas em acordos bilaterais e multilaterais de comércio - e são os próprios americanos que põe a nu essa duplicidade de atos e palavras". Os dados acima fazem a prova do enunciado.