Publicado em O Estado de S. Paulo, 06/06/00
Negócios globais, regras globais
José Pastore
Rogério L. F. Werneck, em "Lições do debate sobre desigualdade nos países ricos" (Estadão, 12/05/00) desmascarou a falácia dos que pretendem atribuir aos países pobres o crescimento da desigualdade dos países ricos.
Os advogados dessa tese argumentam que o uso de trabalhadores que ganham menos nos países em desenvolvimento seria o responsável pelo desemprego dos trabalhadores menos qualificados dos Estados Unidos e Europa, baixando a renda dos grupos mais pobres e aumentando a desigualdade. A utilização da mão-de-obra infantil seria uma das principais causadoras desse problema, o que os leva a propor a aplicação imediata de sanções comerciais contra os países que se desviam os padrões mínimos de trabalho.
É evidente que o trabalho infantil deve ser combatido. Nenhum governante de bom senso defende a manutenção das crianças no trabalho e fora da escola. Mas, é claro, que esse combate só dá certo quando há escolas disponíveis e quando as famílias podem dispensar a renda gerada pelas crianças.
O assunto de cláusula social, vira e mexe, volta à agenda de empresários, governantes e ONGs dos países mais avançados. Nas reuniões do GATT, em Marrakesh (1994) e, depois, OMC, em Cingapura (1996) o assunto foi tema central das agendas. No ano passado, em Seattle, o Presidente Bill Clinton voltou à carga. Nos últimos cinco anos, os empresários convenceram os sindicalistas que a imposição da cláusula social nos tratados de comércio internacional é uma questão de vida ou morte para as empresas e para os empregos do Primeiro Mundo. Na OIT, o tema é objeto de estudos de uma comissão tripartite com forte pressão dos ricos.
Tive a oportunidade de participar, na semana passada, do Congresso Mundial de Relações do Trabalho que se realizou em Tóquio, com mais de mil especialistas, onde apresentei os resultados dos programas brasileiros que combatem o trabalho infantil.
No mundo acadêmico é bem mais fácil entender que a remoção de um problema social requer a remoção de suas causas. No mundo dos negócios, porém, o quadro é outro. Muitos empresários do Primeiro Mundo vêem o trabalho infantil como uma ação deliberada de competir deslealmente. Do lado dos governos, é comum acusar os países pobres de negligentes. Entre as ONGs, enquadra-se o trabalho infantil dentro das violações dos direitos humanos e concordam com a aplicação de sanções comerciais aos países pobres.
Digamos que isso resolva. Mesmo assim, para se implantar controles universais nos tratados comerciais há, pelo menos, três questões a serem resolvidas: (1) Como impor regras internacionais a leis nacionais no campo do trabalho? (2) Quais os fundamentos técnicos para se adotar as regras dos países mais desenvolvidos como "standards" para os países menos desenvolvidos? (3) Qual é órgão que tem a reputação necessária para fazer uma intervenção internacional e garantir que capital e trabalham conviverão em um ambiente harmônico em todo o planeta?
Além disso, o crucial é garantir a obediência. Para tanto, essas regras teriam de ser definidas através de um desconhecido processo de discussão e participação de todos os países, respeitando-se os direitos das maiorias, das minorias e dos princípios das vantagens comparativas.
Se aprovar as regras é difícil, obedecê-las é um empreendimento colossal. Obediência depende de viabilidade. É fácil proibir o trabalho das crianças. Mas é difícil transferi-las do trabalho para a escola. Para os países demandantes, a simples remoção do trabalho é a solução desejada. Para os países demandados, a passagem de crianças do trabalho para o mundo da droga ou da prostituição é o começo de um problema maior.
O uso de proibições internacionais e tarifas punitivas pode sair pela culatra ao levarem as crianças a entrarem em atividades subterrâneas, enfraquecendo ainda mais a estrutura familiar e a base de sua sustentação.
Nos países ricos, a transferência das crianças dos ambientes de trabalho para a escola foi um processo gradual e precedido de fortes ondas de desenvolvimento econômico.
O mundo desenvolvido, que se diz tão tocado pela desumanidade do trabalho infantil – e é desumano mesmo! – tem dado muito poucas provas de sinceridade no sentido de melhorar a vida das crianças dos países mais pobres. Poucos deles estão inclinados a pagar mais por uma peça de roupa, um sapato ou um tapete fabricados apenas por adultos. Raros estão dispostos a apoiar a educação e ajudar as famílias dos países mais pobres. Poucas empresas multinacionais aceitam aplicar nos países mais pobres, os padrões trabalhistas praticados em suas matrizes.
As experiências que o Brasil tem feito com os programas de bolsa-escola dão sinais positivos pois, ao mesmo tempo em que expandem a rede de boas escolas, garantem às famílias a renda que auferida pelas crianças.
Atacando nas duas pontas, o problema tem grande chance de se resolver: é preciso pagar as famílias pobres para manter as crianças em escolas de boa qualidade. Isso não tem nada a ver com a simplória idéia de aplicar sanções comerciais para acabar com o trabalho infantil.
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