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Publicado no Jornal da Tarde, 29/12/1999

A proteção do trabalho no futuro

Tudo indica que as próximas décadas vão continuar registrando transformações profundas no campo do trabalho.

Como seres humanos e racionais, gostaríamos de ter uma vida marcada pela estabilidade, previsibilidade e acesso às instituições de proteção nas horas de maior necessidade – no desemprego, na doença e na velhice.

Mas, a vida segura está ficando cada vez mais longe. O velho emprego fixo, que a pessoa exercia anos a fio na mesma firma, e nele se aposentava, é quase peça de museu. Em todos os países, encolhe cada vez mais o emprego fixo e se expande o trabalho variável, executado de forma autônoma, por projeto, como subcontratado, terceirizado, para uma ou mais firmas, ou para si mesmo.

Nesse novo mundo, as leis de proteção que valiam para o emprego fixo, não valem para o trabalho variável. A realidade brasileira é um exemplo de que o mercado informal é desamparado. Para quem está nele, não há o seguro-desemprego, aposentadoria ou pensão de viuvez. Mas, ironicamente, as pessoas trabalham cada vez mais no mundo do trabalho variável e menos no do emprego fixo.

Essas pessoas precisam ser protegidas. Afinal, o profissional autônomo também envelhece. Os subcontratados ficam doentes. Os terceirizados morrem. Todos deixam viúvas, viúvos, filhas e filhos que precisam de proteção.

Proteção em novas bases

E de onde virá essa proteção? As leis do trabalho estão sendo desafiadas a evoluir mais depressa. A demora gera graves desigualdades. Não tenho dúvida de que uma parte expressiva da precariedade registrada no mercado informal do Brasil se deve à falta de leis funcionais e realistas e à sobrevida de leis fatigadas e ultrapassadas. O Brasil precisa criar mecanismos de proteção que atendam o mundo do trabalho variável que cresce cada vez mais.

Seria o caso de esquecer totalmente as leis do mundo do emprego e criar um conjunto de leis inteiramente novas para o mundo do trabalho?

Há que se tomar cuidado na hora de inovar. É preciso estudar bem a natureza desses mundos. As pesquisas indicam ser comum o caso de pessoas que ziguezagueiam entre o mundo do emprego e o mundo do trabalho. Nesse processo, elas vivem, ora protegidas, ora desprotegidas quando, na verdade, precisariam estar permanentemente protegidas – à despeito do que fazem.

Esse é o grande desafio da próxima década. Como construir instituições que protejam os seres humanos, independentemente da forma como trabalham?

A interpenetração entre os dois mundos se desdobra em outros campos. Assisti-se a uma mesclagem dos setores produtivos. Hoje em dia, muitas indústrias prestam serviços, outrora das empresas de serviços, da mesma maneira que muitas lojas produzem bens, outrora produzidos pelas indústrias. Fundem-se gradualmente os segmentos do mercado de trabalho, tradicionalmente subdividido em agricultura, indústria, comércio e serviços.

Nessa trajetória, a composição da força de trabalho se modifica. Algumas profissões morrem, outras nascem e a maioria se transforma. As pessoas já têm dificuldades para dizer o que são em termos de profissão. Elas não sabem a que conselho profissional se filiar e qual o sindicato que as faz sentir mais cômodas.

Aliás, os sindicatos, que nasceram e apreenderam a trabalhar no mundo do emprego, estão sendo desafiados a sobreviver no mundo do trabalho. É uma mudança profunda. Poucos estão fazendo a travessia. Para a maioria, a filiação e a saúde financeira despencam a passos largos. Muitos morreram. No Brasil, a mortandade só não foi maior porque os sindicatos têm a sua receita garantida pela lei da contribuição sindical, que dispensa a vontade do contribuinte e o bom desempenho dos sindicatos.

As pesquisas mostram, porém, que alguns sindicatos estão passando pela transformação, envolvendo-se de forma crescente com as atividades de educação, treinamento e seguridade social – serviços de grande utilidade para os trabalhadores do presente e do futuro.

Mais do que isso, vários deles perceberam a importância de participar na reformulação das atuais instituições trabalhistas e providenciarias. Está em formação uma nova ideologia sindical.

Os problemas de segunda geração

As mudanças acima apontadas estão deixando como seqüelas inúmeros problemas de segunda geração, que precisam ser equacionados. Os efeitos colaterais no campo social têm sido dramáticos. Ora falta trabalho para quem precisa trabalhar. Ora falta proteção para quem consegue trabalhar.

As instituições de proteção atuais (seguro-desempego, seguro-saúde, aposentadoria, etc.) foram criadas na Europa nos anos dourados quando o crescimento era forte e o emprego fixo era dominante.

Naquele tempo, o trabalho e a demografia eram favoráveis. Um grande grupo de pessoas empregadas sustentava um pequeno grupo de desempregadas. Um grande grupo de pessoas saudáveis mantinha um pequeno grupo de pessoas doentes. Um grande grupo de pessoas jovens financiava a aposentadoria de um pequeno grupo de pessoas idosas.

Hoje tudo mudou. Um grupo pequeno de empregados tem de sustentar um enorme grupo de desempregados. Um grupo pequeno de pessoas saudáveis tem de arcar com as despesas de um grupo colossal de pessoas doentes. Um grupo declinante de pessoas jovens tem de financiar a aposentadoria de um grupo explosivo de pessoas idosas, como na previdência social do Brasil e de muitos outros países.

As finanças das velhas instituições de proteção estão à beira da falência. O pior é que isso ocorre exatamente na hora em que a proteção é mais necessária, pois é crescente o número de idosos, desempregados e doentes.

A realidade tem sido cruel. O Estado reduz a sua capacidade de proteger. As firmas reduzem o amparo que davam aos seus empregados. Governo e empresas passam a manter um núcleo central de profissionais cada vez menor, preferindo utilizar o trabalho de quem não mais pertence aos seus quadros.

Ambos vão saindo de cena, e os trabalhadores vão ficando no ar. É como se o Estado e a empresa – e a sociedade toda - dissessem aos trabalhadores: agora o problema é de vocês. Cuidem da sua proteção.

Prosperidade econômica e intranquilidade social

As previsões dos estudiosos da economia (Banco Mundial, FMI, BID e outros) indicam que os próximos anos serão marcados por prosperidade econômica, inclusive no Brasil. Onde isso ocorrer, será motivo de alegre comemoração dos povos.

As previsões dos estudiosos do trabalho (OCDE, Bureau of Labor Statistics, Japan Institute of Labor e outros) indicam que aqueles anos serão caracterizados por uma escalada da intranqüilidade no campo das proteções sociais. Isso será lamentado por todos.

Em outras palavras, o novo século começará com o enorme desafio de combinar prosperidade com tranqüilidade.

O quadro é grave. Tornou-se urgente a necessidade de se contar com instituições trabalhistas e providenciarias que sejam capazes de manter um mínimo de proteção em uma sociedade que exige um máximo de flexibilização.

Mas essas instituições não existem. Elas têm de ser criadas. E ninguém sabe como serão, embora, haja desde já um forte consenso de que elas devam ser instituições portáteis - que acompanham as pessoas nos seus ciclos de vida e no zig-zag entre o mundo do emprego e o mundo do trabalho.

Na busca de instituições portáteis, os trabalhadores do mundo do trabalho (autônomos, subcontratados, terceirizados, etc.) começam dar sinais de como serão as novas instituições, ao embutirem no preço do seu trabalho os recursos necessários para pagar seguros individuais e coletivos que lhes permitam enfrentar as horas de incerteza na doença, desemprego e na velhice.

A mudança não será instantânea e nem automática. Durante um bom tempo, será inevitável ao governo, complementar as contribuições individuais dos mais pobres. Isso fará fluir formas mistas de financiamento das proteções sociais e o uso de "over-heads" das contribuições dos mais protegidos para ajudar a proteger os menos protegidos. Esse será um campo fértil para inovações.

Mas a criação de novas instituições de proteção é urgente por um outro motivo. Pelo fato dos seres humanos valorizarem a segurança e a previsibilidade, eles estão sempre prontos a aderir às sociedades que dispõem de instituições que desempenham bem essas funções e rejeitar adesão às que fracassam nessa tarefa.

Neste segundo caso, por se sentirem inseguros e frustrados, os seres humanos deixam de confiar nos governos e na própria sociedade - o que é o primeiro passo para a desorganização, a anomia, a violência generalizada e, numa palavra, o fim da coesão social.

Isso não pode acontecer. A fragilização da coesão social destroi as sinergias sociais. Empurra os grupos humanos para condutas selvagens. Torna insuportável a convivência em sociedade. Ninguém quer viver nessas condições, é claro.

O desenho da transição do sistema convencional de proteção social para o sistema novo não vai ser presenteado pelo mercado ou pela globalização. Nós seres humanos é que teremos de realizá-lo.

Os contornos dessa passagem são ainda uma grande incógnita. Nos países que compreenderam a necessidade de tais mudanças e decidiram agir, expandem-se os sistemas de seguros privados. Nos que resistiram e procuram evitar esse problema, explodem os déficits públicos e diminui a coesão social.

O Brasil está no segundo caso. Com os votos de que, no ano 2000, venhamos a nos inserir no rol dos países que estão no primeiro caso, permitam-me dizer: brasileiros de todo o Brasil: Feliz Ano Novo!