Publicado em O Estado de S. Paulo, 07/12/1999
As crianças de Clinton...
As nações desenvolvidas, em especial, os Estados Unidos, não desistem de querer aplicar sanções comerciais aos países que desrespeitam normas trabalhistas como, por exemplo, aos que usam o trabalho infantil.
Na reunião da OMC, o assunto foi novamente proposto pelo Presidente Bill Clinton. A maioria dos países em desenvolvimento derrubou a proposta. Foi o fim da novela?
É claro que não. O que está em jogo não é uma causa humanitária, mas uma guerra comercial. A linguagem é da primeira, onde os países desenvolvidos cantam em prosa e verso o seu "infinito amor" pelas crianças pobres do mundo, mas a ação é da segunda pois, empresários e sindicalistas daqueles países querem se ver livre da concor-rência dos que, de fato, usam o trabalho infantil.
Em junho de 1999, em Genebra, participei da comissão técnica que gerou a Convenção 182 da OIT que visa eliminar as piores formas de trabalho infantil para me-nores de 18 anos. Revendo as anotações, vi que duas delas abalam o "humanismo" das ruas de Seattle e o universalismo de Clinton.
Em discussão com um empresário alemão, disse a ele que ninguém podia ser a favor de manter uma menina longe da escola, passando o dia colando sola de sapa-to.
Ponderei, porém, que a proibição que estávamos ali formulando precisava assegurar que o travessia fosse do trabalho para a escola, e não outra como, por exemplo, do tra-balho para a prostituição infantil, tão a gosto de certos turistas estrangeiros.
Não foi surpresa verificar que o meu interlocutor não tinha a menor preo-cupação com o destino da menina. Queria apenas retirá-la de um trabalho que, na sua opinião, não amparada pelos fatos, causava desemprego na Alemanha.
O outro exemplo refere-se ao propalado universalismo dos direitos das crianças. Neste caso, a discussão foi com um alto funcionário do governo dos Estados Unidos.
Dentre as várias medidas que estávamos ali propondo, figurava a proibi-ção do uso de crianças em combates e atividades bélicas. Esperava encontrar certa re-sistência de alguns países árabes e centro-americanos que colocam metralhadoras nas mãos de criança em conflitos armados.
Fiquei surpreso em ver que a oposição vinha dos Estados Unidos que re-crutam menores a partir dos 16 anos para as suas forças armadas - abaixo portanto, do limite de 18 anos estabelecido na Convenção 182. Espantei-me ainda ao saber que não são raros os casos de americanos de 16 e 17 anos (do Porto Rico e das ilhas do Pacífico) que são alinhados nos batalhões de combates internacionais.
Os americanos fecharam a questão. Surgiu um grave impasse. A presença do Presidente Bill Clinton, que estava escalado para comparecer no encerramento dos trabalhos para celebrar a nova convenção, ficou ameaçada. Tivemos de fazer um com-promisso na linguagem, ao limitar a proibição ao "recrutamento forçado" de crianças para os combates armados pois, disseram os americanos, os menores que se alistam, o fazem porque querem. E por que não dizer que muitas meninas entram na prostituição porque querem?
Os dois exemplos refletem o cinismo da retórica humanitária e universa-lista que gira em torno da eliminação do trabalho infantil. O mundo desenvolvido tem exibido pouca sinceridade para melhorar a vida das crianças nos países pobres. Muitos consumidores exigem que os produtos que compram não sejam produzidos por crianças.
Mas poucos estão dispostos a pagar um pouco mais por eles, como compensação para educar melhor as crianças do mundo pobre. Isso não é especulação. É dado de pesquisa (Rakesh Mohan, "Comment", in Alan B. Krueger, International Labor Standards and Trade, The World Bank, Washington, 1997).
Há coisas mais graves. Em 1995, surgiram várias propostas para as em-presas americanas, que operam no exterior, aplicarem nos países hospedeiros as normas trabalhistas dos Estados Unidos (Jagdish Bhagwati, "Multilateralism at Risk", in The World Economy, Outubro de 1995). A idéia foi brutalmente rejeitada, coincidentemente, pelos empresários e sindicalistas que pregam a univeralização dos direitos dos trabalha-dores. Interessante, não é?
O problema do trabalho infantil não vai se resolver apenas com leis nacio-nais, convenções internacionais ou sanções comerciais. Há que se agir nas causas.
O Brasil não está mal nesse campo. Com os programas de bolsa-escola, que contribuem para a renda familiar, as crianças brasileiras estão ficando mais tempo na escola e aproveitando melhor o ensino. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 1998, por exemplo, revelou que, nos últimos cinco anos, a proporção de crianças que trabalham no Brasil caiu de 11,5% para 8,9%, concentradas no meio rural, sendo que a metade destas, trabalham e estudam.
Se os países ricos desejam realmente ajudar as crianças dos países pobres, o campo é imenso e está aberto. Mas isso terá de ser feito através de ações efetivas e não de discursos inflamados e de protecionismo disfarçado.
|